domingo, 18 de março de 2012

De Greta Garbo a Madonna: os copeiros homossexuais e suas divas nas telenovelas



 Por Guilherme Fernandes

Ocupando papéis submissos, copeiros e mordomos são destaques há muito tempo em representações dramatúrgicas. O cinema explorou muito bem esses personagens e, por vezes, foram eles os culpados e/ou peças chave para desvendar crimes e mistérios. Na televisão, em especial nas telenovelas, o copeiro/mordomo também ganhou destaque.

Nesse sentido, o ano de 2011 pode ser considerado um verdadeiro marco, especialmente no que se refere a personagens homossexuais representando copeiros ou mordomos. No início do ano, nos divertimos com Eugênio (Sérgio Mamberti) na reprise de “Vale Tudo” (1988) no Canal Viva. Na tela da Rede Globo, Aguinaldo Silva praticamente colocou o personagem Crodoaldo Valério (Marcelo Serrado) como o protagonista de “Fina Estampa” (2011). E, para fechar o ano, a Globo Marcas lançou o DVD de “Dancin’Days” (1978) em que é possível relembrar as histórias de Everaldo (Renato Pedrosa). São estes três personagens que iremos privilegiar nesse texto. Mas, antes, vamos voltar um pouco mais no passado e contextualizar melhor nosso “enredo”.

A fidelidade quase desumana de um funcionário por um patrão está na telenovela pelo menos desde 1970, com “Assim na Terra como no Céu” de Dias Gomes. Nesta trama, Konstantópulus (Lajar Muzuris) se mostrou bastante fiel e leal ao patrão Renatão (Jardel Filho). Inclusive, ele foi um dos suspeitos de ter matado Nívea (Renata Sorrah), pois a garota poderia ter chantageado o personagem de Jardel Filho. Nesta mesma linha, de mordomos devotos ao patrão tem-se a relação de Jacinto (Cláudio Curi), um ex-torturador, e o enérgico Mário Liberato (Cecil Thiré), com um grande diferencial: ambos mantinham um relacionamento homossexual com práticas de sadomasoquismo. Em virtude de alguns crimes que cometera e com medo de uma possível revelação, Mário mandou um capanga matar seu fiel mordomo. Nesse ínterim ele já tinha se casado com Carolina D’Ávila (Renata Sorrah), ex-mulher do seu chefe, o poderoso Renato Villar (Tarcísio Meira), agora apaixonado pela juíza Lúcia Brandão (Bruna Lombardi), isso tudo na telenovela “Roda de Fogo” (1986) de Lauro César Muniz.

      
Contudo, o que nos chama mais atenção, é a relação dos copeiros com suas patroas – tratadas como verdadeiras divas. Nesse caso, existe uma abdicação de sua própria vida para viver (e também sofrer) os dramas das mulheres poderosas. O exemplo protótipo é o personagem Everaldo (Renato Pedrosa) de Dancin’Days (1978) de Gilberto Braga. Everaldo trabalhava para a grã-fina Yolanda Pratini (Joana Fomm). Ele era o responsável por ler as correspondências, anotar os recados, saber que visita deve ou não ser recebida, cuidar da “filha” Marisa (Glória Pires) e deixar a prataria da casa brilhando. Everaldo também ajudou a colocar lenha na fogueira na briga de Yolanda com sua irmã Júlia Mattos (Sônia Braga).

Júlia era uma ex-prisioneira que alçava conquistar seu lugar na sociedade e recuperar sua filha Marisa que havia deixado sob os cuidados da irmã. Com uma força fora do comum, Júlia se ascende socialmente. Enquanto Júlia estava cada vez mais rica, sua irmã, em virtude da separação, ficou cada vez mais sem recursos financeiros. E adivinhem o que aconteceu?
Yolanda se viu obrigada a demitir seus funcionários, até mesmo aconselhada por Everaldo, que passou a lavar, passar, cozinhar, faxinar e fazer os demais serviços da casa. Inclusive, em certo momento da trama, Yolanda pergunta ao copeiro se ele se importaria em receber seu ordenado atrasado, pois ela precisava comprar um vestido. Ele aceitou, dizendo que um vestido para a “madame” (evocado em um francês perfeito) era muito mais importante que seu salário.

Como forma de diversão, além de bajular sua madame, Everaldo gostava de assistir filmes no cinema e na televisão. Porém, seu passatempo preferido eram as óperas – o que consumia seu salário. Como naquele momento não era temporada de ópera no Rio de Janeiro, Everaldo não precisava de dinheiro.
Por vezes, o mau-humor de Yolanda fazia com que ela tratasse mal seu funcionário, porém ele continuava ali, imóvel, pronto para servir. Contudo, Yolanda gostava do copeiro, não sabia mais viver sem os mimos. Certa vez ele afirmou “Além de madame eu sou suscetível ao charme de apenas outra mulher nessa vida”, surpresa e com certo temor, Yolanda questionou quem era. A resposta foi um alívio: Greta Garbo – a então decadente atriz do cinema norte-americano.
O reconhecimento de Yolanda ao trabalho de Everaldo era o ápice que o personagem tinha. Um das cenas mais emocionantes da telenovela foi a ceia de Natal que ele havia preparado. Na ocasião, ele comprou uma “caixinha de música” para a patroa. Ela retribuiu com o maior presente que ele poderia ter recebido: um o beijo de gratidão no rosto.


Outro grande exemplo de mordomo homossexual que praticamente vive a vida dos padrões e não tem uma própria, foi o Eugênio (Sérgio Mamberti) de “Vale Tudo” (1988 de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères). Eugênio era fino e educado, falava inglês e francês, também tinha uma vasta cultura cinematográfica, não demonstrou ter um par romântico e quando não estava servindo os Almeida Roitman, ia ao cinema ou assistia televisão – da mesma forma que Everaldo.


Os exemplos mais recentes de “everaldos” em telenovelas foram apresentados em “Passione” (2010 – Sílvio de Abreu, Rede Globo, 21h) e em “Fina Estampa” (2011 – Aguinaldo Silva). Na trama de Sílvio de Abreu, Arthurzinho (Júlio Andrade) se mostrou fiel e devoto, amigo e confidente de Stela (Maitê Proença). Se Everaldo chamava Yolanda de “madame”, Arthurzinho se dirigia à Stela como “milady” (em inglês). Contudo, ao contrário dos mordomos/copeiros da década de 1970, Arthurzinho tinha um namorado, que apareceu junto a ele em uma corrida de bicicleta em que Sinval (Kayky Brito), filho de Stela e Saulo, foi campeão.


O caso mais recente é o hilariante Crodoaldo Valério (Marcelo Serrado), um dos grandes destaques de “Fina Estampa”. Mesmo com as constantes humilhações, ele se mantém fiel e leal a Tereza Cristina (Christiane Torloni). Crô, como é conhecido, se envolve afetivamente e tem uma vida sexual ativa. Além de Fred (Carlos Vieira), como foi mostrado em cenas de flashback, ele tem outro(s) namorado(s), com uma tatuagem de escorpião no pé. O jeito peculiar (com referências ao Egito antigo e à Grécia clássica) de se referenciar às “divas”, também é um dos destaques desta telenovela; os nomes utilizados são muitos, entre eles: Rainha do Nilo, Cleópatra, Filha de Osíris, Pitonisa de Tebas, Sereia da Núbia, Divina Íris, Nefertiti. Porém, em seus momentos de raiva, Crô solta pérolas como: Jacaroa do Nilo, Vaca do Nilo e outras construções satíricas/pejorativas para se referir a Tereza Cristina. Se Everaldo tinha a Greta Garbo, Crô tem, como “segunda” divindade, a cantora Madonna. Inclusive, existe um altar a ela na casa de Crô. O personagem de Marcelo Serrado é um dos mais populares da trama de Aguinaldo Silva. 


Eugênio, Arthurzinho e Crô são versões modernas de Everaldo. Em todos os casos (talvez menos no personagem de Júlio Andrade) foi perceptível ver o vasto repertório cultural dos personagens. O bom gosto deles impera sobre o cotidiano das patroas. O que se mostra interessante observar é que as “divas” sempre aparecem em primeiro lugar, depois vem (ou não) a vida própria. Membros da estética camp (como se refere a literatura especializada em estudos de sexualidade) e, também, reduzindo a homossexualidade, a comicidade, e ainda, a relação de obediência e “vassalagem”. Não eras vezes ativistas homossexuais militam contra esses personagens, pois acreditam que eles “mancham” a imagem gay – isso, evidentemente, não só no Brasil – contudo, nós adoramos e rimos muito com esses personagens. Que venham outros “Everaldos” em nossa teledramaturgia.

Fotos: Google Imagens
Vídeo: Canal MofoTV (You Tube) 

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