quinta-feira, 15 de março de 2012

NUM APARTAMENTO PERDIDO NA CIDADE...

por José Vitor Rack


O GRITO, novela escrita por Jorge Andrade e dirigida por Walter Avancini, Gonzaga Blota e Roberto Talma, estreou em 27 de Outubro de 1975 na faixa das 22:00. Era uma grande aposta da TV Globo em seu horário mais experimental.
A novela estreava com muitas expectativas em torno de si. Tinha a difícil missão de substituir o megasucesso Gabriela. Marcava a volta de Jorge Andrade à televisão depois do grande sucesso de Os Ossos do Barão dois anos antes (Jorge sofreu um enfarte durante o trabalho). Depois de muito tempo, a Globo apostava em um vôo solo de Glória Menezes à frente de um elenco. Tarcísio Meira, seu eterno parceiro nos palcos e na vida, tinha recém saído de Escalada, de Lauro César Muniz.
Propositadamente ou não, a emissora marcou essa expectativa na própria abertura da novela. Pela primeira e única vez, usou-se a marcante frase “REDE GLOBO APRESENTA”, comum na linha de shows e nas transmissões esportivas, antes da apresentação dos créditos de uma telenovela. 



O texto era urbano, ambientado em São Paulo e focado na discussão da desumanização das metrópoles. Nada mais antagônico com o feérico folhetim baseado na obra de Jorge Amado que o antecedeu, Gabriela. A trilha sonora, basicamente instrumental, foi composta em grande parte pelo maestro Radamés Gnatalli e pelo brilhante saxofonista Victor Assis Brasil.

“São Paulo é uma cidade com 12 milhões de habitantes, dura, onde as pessoas lutam para viver, onde não se tem lugar para empregar o lazer, não existem parques nem jardins, onde as ruas são esburacadas, onde há poluição de tudo quanto é espécie: poluição do ar, poluição visual, poluição sonora, poluição arquitetônica. O homem fez a cidade para o homem, mas não pensou no homem que ia viver nessa cidade. São Paulo está aí toda revirada, tentando se consertar. Eu creio que ela vai ser consertada um dia.”
Jorge Andrade


Fumando em sua famosa piteira, ele criou um microcosmos representativo da metrópole chamado Edifício Paraíso. Projetado para ser elegante, imponente, bem localizado. Ocupava o terreno de um antigo casarão de uma família quatrocentona. Dois apartamentos por andar, piscina, espaço e conforto para os moradores. Com a construção do Elevador Costa e Silva à sua porta, a desvalorização foi inevitável e, para diminuir o prejuízo, seu construtor determinou alterações na planta. A distribuição dos apartamentos ficou assim:

· Cobertura, onde há um duplex onde vive o construtor do edifício com sua família.
·  Apartamentos de três quartos do 9º ao 3º andar;
· Doze pequenos apartamentos nos dois andares inferiores, muitos alugados, outros vazios.

Ao tomar essas medidas, o construtor transformou o Edifício Paraíso em uma espécie de zoo humano onde viviam pessoas de variadas origens e classes sociais. Onze andares de contrastes e desespero, refletindo a desigualdade social tipicamente brasileira.
Paulista, quatrocentão, autor de algumas das obras mais importantes do teatro brasileiro, ex-professor universitário e ex-jornalista, Jorge Andrade povoou este edifício com personagens fascinantes. Diferentes entre si, sem margens para o maniqueísmo fácil, típico das telenovelas.


Ex-prostituta. Médico. Arquiteto. Atriz. Bancário. Dona de Casa. Secretária. Ambulante. Fazendeiro. Estudante. Socialite. Essa vasta gama de pessoas era obrigada a conviver e a mostrar uns para os outros o que escondiam por trás das finas paredes de um apartamento.
Preconceito. Nostalgia. Ambiguidade. Medo. Contrabando. Insegurança. Dor. Angústia. Desespero.
Esse caldeirão esperava um só fato gerador para que sua temperatura subisse a níveis insuportáveis. E esse fato ocorreu com a chegada de dois novos moradores ao prédio.
Uma viúva que vivia com seu filho doente. Uma mulher com uma história de vida marcada pela dor e pela superação. Marta, personagem vivida por Glória Menezes, era uma religiosa que vivia num convento, imobilizada pelas tarefas de uma freira. Rezar, rezar, rezar. Ela questiona sua vocação ao se fazer simples perguntas: - Eu não posso servir a Deus de outra maneira? Eu preciso viver trancada num convento?
Ajoelhada diante de uma freira, ela conta sua história. Diz que vivendo reclusa, ouve os barulhos da cidade através dos muros. E que decidiu sair e conhecer o mundo, pois não poderia compreender o sofrimento se não o tivesse experimentado. “Eu não podia sentir Deus, sem me sentir uma pessoa humana. Como não podia compreender sem sentir na carne o sofrimento, a dor. Agora eu sinto. Como espinhos, circulando no meu sangue.”.



Ela sai do convento. Conhece um homem carinhoso, fiel, trabalhador. Casa-se e engravida. Perde este marido, morto muito cedo. Cria com sacrifício e resignação o pequeno Paulinho, que sofre de uma síndrome que mata as crianças até quinze ou dezesseis anos no máximo. Como ocorre no autismo, o menino não se comunica normalmente. Pior. Solta gritos terríveis, inumanos durante a noite, não permitindo que os vizinhos descansem. Isto coloca Marta como uma verdadeira cigana, mudando-se três ou quatro vezes de diferentes edifícios, sempre despejada.
Ao chegar ao Edifício Paraíso (que traz em seu próprio nome uma enorme ironia), Marta depara-se mais uma vez com a indiferença, a incompreensão, a ojeriza com que as pessoas tratam quem é diferente.O condomínio discute em reuniões a expulsão. Mas, talvez ciente de que sua missão como mãe está próxima do fim, desta vez ela resolve traçar uma estratégia de sobrevivência. Seu único objetivo é viver em paz com seu filho. E ela usa de todas as armas para alcançar seu objetivo.

O texto de Jorge Andrade aliado ao sensível trabalho de Glória Menezes deu a esta história uma dimensão maior. O grito de Paulinho representou o grito do homem por socorro.
"Como sociólogo é fácil desvendar o valor do seu trabalho, que retratava o drama do cotidiano. Ninguém melhor que Jorge Andrade para mostrar o paulista, a burguesia"
Florestan Fernandes

Para se defender de mais uma ameaça de expulsão, Marta decide lutar. As armas que usa não são éticas, mas funcionam. Numa visita da companhia telefônica para consertar uma das linhas do edifício, um dos funcionários esquece sobre a mesa do zelador, no saguão, um interceptador telefônico. Marta encontra este interceptador e o rouba.
Com ele em mãos ela passa a saber o que se passa em cada apartamento através das conversas telefônicas. Descobre segredos íntimos. Traumas, medos, transtornos, tudo se torna transparente para ela. Marta passa deixar no ar em conversas com os moradores que conhece os segredos de cada um. E que pode revelá-los caso insistam em expulsar a ela e seu filho. 

Continuo a falar de O GRITO na próxima coluna.

@josevitorrack

5 comentários:

  1. poxa, fiquei emocionado ao ler, fiquei embevecido com cada informação dessa novela que eu tinha muita vontade de ter assistido. Essa informação do telefone foi muito legal, assim como essa novela foi recebida pelo público. Sei que a Glória Menezes sabe falas dessa novela até hoje! Parabéns, Zé VItor...espero ansioso pela continuação.

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  2. Como gostaria de rever O Grito! Na época, só assisti alguns capítulos que até me impressionaram, mas admito que me faltava maturidade prá compreender a relevância de um tema desses. Também espero ansiosa pela continuação do texto!

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  3. Tenho muita curiosidade por essas novelas mais antigas, das quais vocês enchem a boca pra falar... lamento que o Canal Viva insista em não reprisar tramas datadas de antes de 1985.

    José Vitor, meu caro, parabéns pelo texto... aguardamos a II parte dele. Um abraço!

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  4. poxa, fico com vergonha de tanta gente nesse blog e ninguém pra apreciar e parabenizar uma lembrança tão ímpar do nosso colega.

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