sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Cinquenta tons de Lavoisier

Por Daniel Couri

O químico francês Antoine Lavoisier, considerado o pai da química moderna, tornou mundialmente conhecido no século XVIII o que hoje se chama Lei de Lavoisier: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". A tal lei continua atualíssima até hoje.

Lavoisier
Seja na TV, no cinema, na música ou na literatura nada se cria, tudo se transforma. Ou, como dizem os mais radicais, "tudo se copia". Está na moda, gente. Cada vez mais vemos releituras de filmes, peças, shows, canções, novelas... Sem querer desmerecer os talentos da atualidade, muitas vezes ficamos com a impressão de que as coisas antigas eram "melhores". Na verdade elas pareciam melhores porque eram novidade. Ao vermos velhas ideias relidas e repaginadas, ficamos com aquela sensação de dejà vu, como se no passado tivéssemos apreciado algo semelhante, porém melhor. Era o sabor da novidade.

Cinquenta tons de cinza – o fenômeno literário do ano passado – escrito pela britânica E.L. James, vendeu 40 milhões de exemplares rapidamente. Romance erótico com toques de sadomasoquismo, o livro consagrou sua autora como a inventora (?) de um novo gênero que mistura romance açucarado e erotismo pretensamente transgressor.


O mérito literário de E.L. James não vem ao caso. É um caso típico da Lei de Lavoisier somado à memória curta do público. Muito antes desse modismo gerado por Cinqüenta tons de cinza, leitores do mundo todo já tinham seus momentos de "prazer proibido" com os livros do americano Harold Robbins, só para citar um exemplo. Quando começou a ser publicado aqui no Brasil, Robbins era um ilustre desconhecido. Numa jogada esperta para atrair leitores e realçar o teor caliente dos livros, a editora Record usou um artifício mais tarde revelado: o nome de Nelson Rodrigues como tradutor.

Os mais radicais chamam de fraude, outros acham quem a estratégia não passou de uma malandragem inocente, coisa dos distantes anos 60/70. Mas o fato é que Nelson Rodrigues nunca fez muita questão de esconder que não falava nada de inglês (nem de qualquer outra língua além do português).

Na biografia O anjo pornográfico, Ruy Castro conta que a ideia fora de Alfredo Machado (dono da Editora Record na época), para "ajudar Nelson a faturar um dinheirinho fácil. Mas era também muito conveniente para sua editora: ao ler 'Tradução de Nelson Rodrigues' com destaque na capa de livros de Harold Robbins, como Os insaciáveis, Os libertinos e Escândalo na sociedade, o comprador via naquilo uma garantia. Sabia que era literatura 'pesada'. Como poderia imaginar que Nelson era o mais acabado monoglota da língua portuguesa...?"


O filho de Alfredo, Sérgio Machado – à frente do Grupo Editorial Record, o maior da América Latina – contou em uma entrevista, não faz muito tempo, que a tradução dos livros de Harold Robbins era feita por outra pessoa. O nome de Nelson era apenas para atrair o público:

O momento talvez fundamental da nossa história foi quando meu pai perguntou ao meu tio: "Décio, por que a gente não faz livro que vende?" Meu tio disse que era porque não tinha; porque o José Olympio já tinha comprado. Meu pai então falou: "Estou lendo um livro que me deram, Os Insaciáveis, do Harold Robbins. O negócio de conseguir direitos é comigo mesmo." Comprou e publicou pela primeira vez um livro com o objetivo exclusivo de vender para o leitor. Ele tinha aquela coisa de publicitário, de jornalista. Veja o que fez para lançar esse livro, que era bem apimentado: pôs que a tradução era de Nelson Rodrigues. Nelson nunca aprendeu inglês! A cada tiragem, ele ia lá na editora pegar um dinheirinho. 

O negócio deu tão certo que nada menos que catorze livros de Robbins vêm com a tradução falsamente assinada por Nelson Rodrigues. Também foram feitos vários licenciamentos para a Abril Cultural, o Círculo do Livro e a Nova Cultural até a segunda metade dos anos 80, sempre com altíssimas tiragens e várias reedições. As tramas apimentadas, sempre recheadas com sofisticados cenários, mulheres fogosas, homens insaciáveis e muito dinheiro vendiam como água. 

A edição número 1 da revista Veja, de 11/09/1968, dedicou duas páginas a uma matéria sobre o sucesso dos livros de Harold Robbins. Na época, ele era o autor mais vendido do mundo, com 40 milhões de exemplares (exatamente como E. L. James hoje). Um dos trechos diz:

Qualitativamente, Harold Robbins não existe para a crítica americana, que invariavelmente despreza os seus romances. Como seu tradutor brasileiro, Nelson Rodrigues, que diz: "Harold Robbins é um momento da estupidez humana". O autor de "Ninguém é de ninguém" confessa ter "tropeçado por acaso" na literatura quando começou a descrever a elite endinheirada da Europa e América. Mas desde então, como excelente homem de negócios, Robbins percebeu depressa que tinha na máquina de escrever uma galinha que punha ovos de dólares.


Apesar de ser considerado literatura adulta e erótica, Cinquenta tons de cinza, ao contrário dos livros de Harold Robbins, se revela totalmente infantilizado, como se tivesse sido escrito para um público adolescente e bem menos exigente. Mais ou menos como os populares livrinhos de banca das séries Júlia, Sabrina e Bianca. O surpreendente é como E.L. James conseguiu virar o furacão editorial da atualidade usando um fórmula tão batida, sem nenhum requinte literário ou narrativo. A série Cinquenta tons já conta com mais dois livros: Cinquenta tons de liberdade e Cinquenta tons mais escuros, sem falar nos inúmeros pastiches que lotam as vitrines das livrarias mundo afora. Uma prova de que, apesar da internet, o público ainda tem bastante fôlego para consumir enlatados apimentados. Ainda que hoje eles estejam mais para fast food.


Um comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...