Por Paula Teixeira
Estamos em uma onda de contos de fadas. E isso não é de agora. O filme "Shrek", por exemplo, já é uma adaptação, uma quebra aparente dos paradigmas dos contos. Mas algo nunca muda nessas estórias: a questão moral e, principalmente, a estrutura arquetípica.
Uma das teorias mais adequadas para analisar esse tipo de produção é a psicologia analítica ou junguiana. Sua base foi desenvolvida por Carl Gustav Jung que, diferentemente de Freud, leva em consideração o místico, o religioso e outros aspectos para analisar a estrutura da psiquê humana, individual e coletiva.
Coletiva. Obras arquetípicas chamam muito a atenção do público. Parecem puxar algo que está guardado em um lugar perdido. Reacendem buscas individuais que são as jornadas de todos, desde que o mundo "é" mundo.
Jornada. Tanto "Hoje é dia de Maria" quanto "Once upon a time" apresentam jornadas de personagens femininos, em um enredo rodeado de imagens arquetípicas. A primeira adapta e exalta as especificidades do folclore brasileiro, adaptado para o formato do conto de fadas. A segunda mergulha o estilo de vida ocidental (não só norte-americano, mas de grande parte do mundo atual) na magia dos fairy tail.
Nas duas tramas, os arquétipos femininos dominam. Em "Hoje", Maria (Carolina Oliveira/Letícia Sabatella) representa uma Cinderela às avessas, a menina do conto pele de asno, entre outros. Ela é forte e rompe as barreiras. Luta contra uma Madrasta má (Fernanda Montenegro), uma mãe postiça que usurpa sua identidade de filha.
Em "Once", Emma (Jennifer Morrison) precisa cumprir o seu destino: resgatar os personagens de contos de fadas que estão presos em uma pequena cidade nos EUA, curiosamente chamada de StoryBrooke. Ela é cética, impulsiva e com forte retidão moral. A perfeita heroína em uma jornada que mescla realidade e fantasia.
Nas duas estórias, todas as personagens femininas são ativas, lutam pelo que querem. São guerreiras e não apenas meras princesas. Temos também representações falhas do feminino: a madrasta. Elas sempre têm inveja das mais jovens e são extremamente egoístas. A competição mina a relação entre protagonistas e antagonistas femininas. O sobrenome da personagem, Swan (significa Cisne, em inglês), ainda indica o processo de transformação, individuação.
Ledo engano pensar que estórias assim são maniqueístas. Elas separam sim o bem e o mal, mas é uma divisão simbólica. Na psiquê individual é justamente esses dois polos que colidem. E os contos de fadas clamam por esse conflito. No dia a dia, temos sempre que escolher um caminho: o mais fácil ou o mais difícil. Normalmente, o mais fácil corresponde a coisas que moralmente podem não ser aceitas e que geram consequências ruins mais a frente. O mais difícil costuma ser o mais correto.
As duas estórias têm outros dois componentes recorrentes em estruturas de contos: espaço e representação do mal misturado com a ideia de tempo. No caso de "Hoje", esse espaço é a caatinga do nordeste, regionalizando a obra. Ela precisa atravessar esse espaço para chegar ao seu objetivo, as franjas do mar (mar, na psicologia analítica, representa o inconsciente, se autoconhecer).
Em "Once upon a time", o espaço é sempre uma floresta que tem uma estrutura parecida tanto quando a estória está ambientada na "realidade" quanto na fantasia. Todos precisam procurar, fugir, achar algo nesse lugar.
O outro componente é um ser maléfico, poderoso. Em "Once", ele é o Mr. Gold ou Rumpelstiltskin (Robert Carlyle). Para além da concessão de desejos, ele parece dominar o tempo. Ele oferece a caminhada mais fácil, mas sempre cobra o preço por esse "adiantamento".
"Hoje é dia de Maria" tem, literalmente, o capeta! Asmodeu (Stênio Garcia) aparece nas diferentes formas, com uma caracterização judaíca-cristã. E suas artimanhas também são bem brasileiras! Ele também oferta a realização dos desejos. Maria sempre recusa suas propostas.
A relação entre esse tipo de estrutura narrativa e de conteúdo com a psicologia analítica é complexa. Cada personagem representa um faceta ou um arquétipo. O mais forte em ambos é o feminino, demonstrado na relevância das personagens femininas. Tantos as do "bem" quanto as do "mal". Ambas são faces da mesma moeda.
Estórias assim inspiram as crianças. Elas parecem resgatar algo escondido, velado. A luta pela construção da personalidade que enfrentarão. Os contos representam de forma extremamente simbólica os conflitos externos e, especialmente, os internos.
Para os adultos que são fisgados pelas estórias, que se identificam ou projetam sua vida nos personagens, é a oportunidade de uma reflexão muitas vezes não percebida, que acontece nas profundezas do inconsciente e questiona: o que sou e o que quero ser.
Confira vídeos de "Hoje é dia de Maria" e "Once upon a time". Repare nas semelhanças:
Confira vídeos de "Hoje é dia de Maria" e "Once upon a time". Repare nas semelhanças:
"Hoje é dia de Maria"
"Once upon a time"
Muito bom, Paulinha!!
ResponderExcluirTemática interessantíssima. As ficções nos permitem um outro olhar para nós mesmos e para o mundo, sempre passível de redescrições.
Lívia
Valeu, Lívia!
ResponderExcluirExcelente texto, parabéns!
ResponderExcluirHoje é Dia de Maria é mesmo uma excelente obra da teledramaturgia com ares literários... fiquei curioso por Once upon time.
ResponderExcluirSempre bom ler o seu texto, Paula. Até o próximo!!!
Hoje é dia de Maria marcou a minha vida e essa área da psicologia também. Once é moderna e toda sua referência cultural vem dos EUA e, principalmente, da cultura inglesa monárquica e da cultura celta. Ainda assim, me apaixonei!
ResponderExcluirem hoje é dia tem tanta referência que me inebriava às vezes, mas amei o primeiro...o segundo eu gostei tb... não vejo onde upon, mas agora vou tentar ver algum episódio e rezar pra que façam maratona. Concordo que as pessoas amam histórias arquetípicas....eu adoro Grimm, por exemplo,que mexe com o lado mau como se as pessoas carregassem defeitos seculares desses faz de conta. Adorei o texto, diferente!!
ResponderExcluirOlá, Edu!
ExcluirEu gostei mais da primeira jornada de Hoje é dia de Maria! O canal Sony fez uma maratona há duas semanas, exibindo uns 4 episódios. Foi aí que eu vi realmente a série. Tinha visto cenas esparsas e sempre pensei em assistir, mas nunca assistia. Graças a maratona e ao zapping, descobri essa maravilha!
Once é muito bem produzida. Um sonho de produção para quem gosta de TV!
Já me falaram de Grimm! Já vou dar um jeito de assistir!
Obrigada pelo elogio!