Por Emerson Felipe.
Muitos críticos e
céticos há tempos profetizam o fim da telenovela em razão dos baixos níveis de audiência em
comparação com os dos anos 70 e 80, o esgotamento das fórmulas do folhetim clássico
e o acesso a novas plataformas, como internet. Ainda assim, vez em
quando surge uma novela diferenciada para pôr em xeque tais assertivas e provar
que o gênero ainda é capaz de mobilizar com fervor o público: assim foi Cheias de Charme, que conquistou o público na
faixa das 7. A saga das três empregadas domésticas, Maria da Penha, Maria do Rosário e Maria Aparecida, que se
tornam estrelas musicais da noite para o dia, garantiu excelente audiência e uma intensa e positiva
repercussão nas redes sociais.
As três Marias de
Cheias de Charme eram, cada uma a seu modo, fortes e carismáticas, com quem o público facilmente se identificavam. Penha foi defendida com muita
emoção por Taís Araújo: a típica brasileira que vai à luta, uma batalhadora que vence na vida com o próprio esforço, apoiada em
valores humanos. Leandra Leal construiu muito bem a decidida Rosário, cuja grande
aspiração era tornar-se cantora, representando a trajetória de muitos
brasileiros que realizam um sonho com os próprios méritos sem lançar de
meios insidiosos. E Isabelle Drummond cada vez melhor enquanto atriz, ao criar a doce e romântica Cida, por vezes ingênua, mas com
personalidade e sem cair no lugar-comum da mocinha fraca e estereotipada. Unindo seus sonhos e ideais, construíram
uma das parcerias mais acertadas já vistas: o divertido grupo musical As
Empreguetes, cujos hits “Vida de Empreguete” e “Maria Brasileira” marcaram a novela
e fizeram sucesso também fora dela.
Para balançar com as estruturas do super trio de protagonistas e brigar de igual, só mesmo uma vilã de peso: o furacão Chayene, interpretada com muito charme por Cláudia Abreu. A experiente e carismática atriz deitou e rolou com o delicioso texto, explorando toda a caricatura possível da extravagante cantora e super estrela de techno-brega que vê o seu reinado ameaçado pelas Empreguetes. Os apelidos jocosos que atribuía aos seus desafetos e mesmo aos seus próximos (curica, urubu, franguinho) e as divertidas armações com a sua fã Socorro (Titina Medeiros) eram puro deleite. Como não rir da incapacidade da Brabuleta de falar corretamente o nome de Rosário?! "Rosalba", "Rosete", "Rosene", "Roxana", "Rosisca", "Rosiranha" e "Rosimunda" foram algumas das pérolas de Chayene. Só uma super atriz versátil e competente como Cláudia Abreu para se entregar de corpo e alma ao nonsense, dançando e cantando a plenos pulmões, e fazer de Chayene uma grande personagem.
Parte do sucesso e importância de Chayene se deve também à maravilhosa coadjuvante com peso de protagonista: a personal-curica Socorro, vivida com competência pela estreante em telenovela Titina Medeiros. A parceria entre a Brabuleta e a fã maluca SOS deu certo, gerou hiláriaas situações e facilmente caiu nas graças do público. Cômico o momento em que Socorro escapa de um linchamento e surge poderosa das águas do rio cheio de piranhas tal qual Isadora Ribeiro na famosa abertura do Fantástico, assim como o seu visual de Lady Praga ao tentar ser cantora profissional!
A direção de Cheias de Charme contribuiu para a construção de um visual único que marcou a novela. O uso constante de briho, plumas, cenários e figurinos exagerados e acessórios extravagantes pela direção de arte resultou numa novela de forte e personalíssimo apelo visual, com um universo próprio e propício a uma história musical. Atrações à parte foram as ''gags'', as edições aceleradas e os surreais sonhos de Chayene, que chegou a virar uma mulher-gorila! Aliás, os já citados hits das Empreguetes junto com os de Chayene ("Vida de Patroete" e "Xote da Brabuleta") e do príncipe das domésticas, Fabian (Ricardo Tozzi), renderam ótimas performances musicais e videoclipes, fazendo de Cheias de Charme uma verdadeira comédia musical. Uma proposta ousada e poucas vezes vistas na televisão, assim como Cambalacho de 1986.
A novel dupla de autores, Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, teceram um texto popular, divertido e de qualidade, dialogando com todas as classes, idades e públicos. Utilizando-se por vezes de narrativa ágil e de tiradas/frases de efeito, e de artifícios ousados como as citadas ''gags'' (filmadas com criatividade pela direção), o roteiro de Cheias de Charme inovou e conquistou o público. Ainda que o texto tenha pisado no freio a partir do fim das Empreguetes, criado entrechos supérfluos - como o súbito e forçado romance entre Penha e Gilson (Marcos Pasquim) - e se repetido, recuperou-se com força total e retomou a criatividade de outrora. Os autores exploraram com frescor as situações clichês, como a impactante solução do
mistério sobre a semelhança física entre Inácio (Ricardo Tozzi) e Fabian, e o sequestro
da mocinha no penúltimo capítulo (com um desfecho musical em vez dos
tradicionais tiroteios).
Frise-se, ainda, a boa dose entre humor e drama: apesar do predomínio da comédia musical, Cheias de Charme não esqueceu o tradicional drama. A amizade de Penha com a honesta advogada Lígia (Malu Gali em luminosa interpretação), testada ao longo da novela por problemas amorosos e familiares; os entrechos folhetinescos entre Cida e a opressora família Sarmento; e a ruína moral, social e econômica desta última renderam emoção e cenas catárticas em Cheias de Charme. Ademais, o rico texto foi explorado com vigor por Alexandra Richter: com uma interpretação soberba, a atriz mostrou sua versatilidade no drama após bons papéis cômicos, em ótima química com Tato Gabus.
Além de retratar a questão do predomínio da música brega e popular no atual cenário musical - inclusive com participações de artistas do gênero na novela - Cheias de Charme retratou de forma inteligente a ascensão da nova classe C, sem estereótipos forçados. As Empreguetes, após uma vida modesta, ascendem socialmente pelo próprio esforço e talento, enquanto a elite antiética decai economicamente. E com muito bom humor: as madames Sônia e Branca (Mônica Torres), por exemplo, disputam os ''serviços'' do pobretão Sandro (Marcos Palmeira); a empregada Gracinha (Lidi Lisboa) é tratada de igual para igual pelos patrões Ariela (Simone Gutierrez) e Humberto (Rodrigo Pandolfo); e a sedutora periguete Brunessa (Chandelly Braz) finalmente conquista a chefia da Galerie dos Sarmentos. Ademais, os autores foram felizes ao fugir da ideia de que toda a suposta nova classe C é parca de bagagem cultural: tocante a cena em que Penha se emociona com o recital de ópera no Real Gabinete Português de Leitura, ao lado do sofisticado Otto (Leopoldo Pacheco).
O flerte com a
internet e outras plataformas como DVD's e pendrives foi outro grande acerto de Cheias de Charme. Muitas tramas desenrolaram-se a partir de tais elementos e só foram contadas e reveladas ao público por meio da interação entre televisão e internet (o lançamento do videoclipe "Vida de Empreguete" se deu não na novela, mas no site oficial de Cheias de Charme; as campanhas no twitter #EmpreguetesLivres e #EmpreguetesPraSempre entraram nos trend topics). Os autores conseguiram construir uma novela diferente, unindo os elementos básicos do folhetim às atuais tecnologias - o sucesso das 9, Avenida Brasil, não logrou êxito nessa mesma proposta.
Com um texto criativo e moderno antenado com os novos tempos da informatização, um elenco muito bem escalado e uma direção personalíssima, Cheias de Charme tornou-se um dos grandes sucessos das 7. A prova cabal de que a teledramaturgia está longe do fim e que ainda pode surpreender, inovar, recriar e emocionar num cenário demasiadamente industrializado e pasteurizado da teledramaturgia. Cheias de Charme mostra que a telenovela está mais viva do que nunca e muito bem, obrigado.
é, Cheias de Charme faz parte dessas novelas bissextas que aparecem. Coisa rara hj em dia!
ResponderExcluirExcelente análise!
Fico aqui imaginando como o Filipe e a Izabel faziam para escrever Cheias de Charme! Será que eles criavam as cenas, passavam para os colaboradores que voltavam pra eles e que passavam para o Ricardo Linhares? Taí, a tese que mais cabeças pensam melhor do que uma, está confirmada. Sabem quantas cabeças pensantes em CHEIAS DE CHARME? Nove.
ResponderExcluirJá estou sentindo imensas saudades, o bom é que as musicas continuam nas rádios, hoje mesmo tocou Marias Brasileiras!
ResponderExcluirCheias de charme pra sempre no meu coração, amei do inicio ao fim.
Muito bom seu texto, a novela foi incrível em todos os aspectos, acredito que o mérito do sucesso da trama se deve a toda a equipe, autores,diretores e atores.
ResponderExcluirSaudades já :( .
petalasdeliberdade.blgospot.com
Adorei o texto!
ResponderExcluirEssa novela me deixou de quatro (e olha que sempre prefiro os dramalhões) e você comentou muitas das coisas que eu mais gostei, como esse equilíbrio entre o drama e a comédia rasgadíssima (quase um degradé, que ia desde a loucura mais delirante da Chayene até a seriedade engraçadinha dos Sarmentos).
Abração!