Por Daniel Pilotto
E mais uma vez temos no ar uma novela de época que não faz
muita força para de ser considerada de época.
JÓIA RARA das autoras Thelma Guedes e Duca Rachid é atual
trama do horário seis, apresentada ao público com uma embalagem aparentemente
situada entre 1934 e 1945 (a segunda fase da história). E digo aparentemente,
pois é só ter um olhar um pouco mais atento e minucioso para descobrir diversos
equívocos que para os mais puristas no gênero (entre os quais me incluo) soam
bastante incômodos.
A trama conta a história de uma criança brasileira que é a
reencarnação de um monge budista que vivia num mosteiro no Himalaia, e a
aceitação deste fato inusitado em sua família e no meio que a cerca. Até aí,
sem problema algum, afinal a capacidade de criação e fantasia dos nossos
autores é infindável e este é o propósito da teledramaturgia, inovar e ousar
sempre em cima do velho e bom folhetim. Entretanto a questão que quero discutir
é o por quê de se fazer uma novela de época sem um comprometimento total com o
período retratado?
A trama da novela poderia ser crível e autêntica para quem
assiste se a produção, direção ou sabe lá Deus quem, respeitasse o simples fato
de que existe algo chamado: ambientação histórica.
Sei que muitos irão dizer que isto é irrelevante. E a emissora
por sua vez, nesta sanha voraz de se popularizar a qualquer custo não perde
tempo com os detalhes. Afinal, como alcançar classes mais baixas se ficar
retratando tudo exatamente como era na época? Eles mesmos já decidiram que uma
parcela do público não gosta de tramas de época, e não gosta de ver como era um
comportamento específico, uma estética ou uma sociedade tão diferente da qual
eles vivem.
Em parte por preguiça do público e comodismo da emissora,
temos no ar algo não muito definido e muito incoerente até, por parte de uma
emissora que sempre pode se gabar das melhores produções de época da TV
brasileira. Capacidade e qualidade sempre existiram. Seja no princípio, nos
tempos áureos das novelas de época das seis dos anos 70 e 80 como ESCRAVA ISAURA,
O FEIJÃO E O SONHO, MARIA, MARIA, A SUCESSORA, OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO, TERRAS
DO SEM FIM, DIREITO DE AMAR, BAMBOLÊ, VIDA NOVA, PACTO DE SANGUE, SALOMÉ e nas
mais recentes anos 90 e 2000 com FORÇA DE UM DESEJO, ESPLENDOR, O CRAVO E A
ROSA entre outras.
Anteriormente no horário tivemos dois exemplos bem
específicos, as novelas CORDEL ENCANTADO (coincidentemente das mesmas autoras)
e LADO A LADO da dupla João Ximenes Braga e Claudia Lage. A primeira era um
conto de fadas ambientando em algum lugar do começo do século XX, digo algum
lugar, pois nada era definido exatamente, existiam diversas influências
estéticas na trama e nada era muito preciso. Neste exemplo tudo era perdoável
já que a novela era vendida assim, como um cordel, um conto, uma história farsesca
e quase teatral que não estava inserida em nenhum contexto. Portanto não
podemos estranhar o fato de Jesuíno (Cauã Reymond) usar calças jeans em pleno
sertão nordestino.
Já no caso de LADO A LADO, o momento histórico de um Rio de
Janeiro da primeira década do século XX era bastante evidente, ali as influências
históricas davam o tom e moviam as personagens da trama. Por conta disto era
inadmissível ouvir uma personagem bem nascida e educada como a Laura (Marjorie
Estiano) chamar a mãe, a Baronesa Constância (Patrícia Pillar) de “você”. Ou
então ter atitudes comportamentais muito, mas muito à frente de seu tempo.
Mesmo que os autores queiram nos fazer crer que ela era uma precursora.
Em JÓIA RARA as atitudes e as características das
personagens não estão tão distantes da época retratada. Neste quesito as
autoras até que mantém bem marcado o rigor e a formalidade da década, e com
isto compõe os dramas e situações.
Exceto é claro pela caracterização equivocada das
personagens criadas por elas.
Um dos exemplos mais gritantes vem do núcleo do Cabaré da
novela. É ali que coristas e bailarinas cometem as maiores incoerências, a
começar pelo excesso de cabelos tingidos de “platinum blonde” por metro
quadrado. Nos anos 30 este tipo de descoloração do cabelo era moda,
influenciada por atrizes do cinema americano como Jean Harlow ou Carole
Lombard, entretanto a moda era apenas para as mulheres que tivessem mais
posses, afinal de conta era um tratamento caro e não se fazia num salão da
esquina. Aliás, aqui no Brasil isto era praticamente inexistente já que estes
produtos eram em sua maioria importados e muito complexos de serem manipulados.
Então fica a pergunta. Como as coristas que mal tem dinheiro para pagar suas
contas na pensão onde moram fazem um tratamento de cabelo tão caro?
E como se não bastasse, na trama outras personagens aparecem
com o mesmo tipo de cabelo, ou então como explicar o cabelo de Volpina (Paula
Burlamaqui) a lavadeira do cortiço da novela? Ela é russa, dinamarquesa? É a
novela com a maior quantidade de loiras (mesmo que tingidas) já feita até hoje.
E não, a novela não se passa no Sul do país.
Outra que chegou há pouco na trama e também é um completo
equívoco temporal, é a personagem de Mariana Ximenes, Aurora Lincoln. Vedete
internacional a moça chegou ao Brasil vinda de Paris, trazendo suas modas e
costumes. O que não explicaram muito bem é o por que de em plenos 1945 a
personagem tem um visual completamente final dos anos 50? Sim, além do cabelo
(nitidamente inspirado em Marilyn Monroe no auge de sua carreira dos anos 50,
já que nos 40 Marilyn era ruiva de cabelos compridos), ela também usa roupas
que jamais seriam usadas na época, mesmo por uma pessoa que trouxe a moda de
fora. Nos anos 40, em nenhum lugar do mundo se usava calça fuseau, simplesmente
por que elas não existiam. E ainda mais para sair na rua. Uma mulher? Nem
prostituta “das mais rampeira” como diria a Perpétua de TIETA.
Isto sem falar nos sapatos. Aurora é realmente muito a
frente de seu tempo, pois dia destes apareceu usando um modelo destes que vemos
hoje nas lojas de sapatos femininos, bem modernos e estranhos.
Aí fica a dúvida, é uma desconexão total da figurinista com
a época da trama ou uma liberdade para fazer moda e propaganda de produtos para
as consumistas atuais? Numa entrevista recente a figurinista da novela Marie
Salles deu a seguinte declaração: "Me senti livre para percorrer
diferentes momentos da história. Pego vários elementos. Peguei referências de
grandes atrizes do cinema, de Madonna e até de Beyoncé, nos dias de
hoje. Não preciso ficar presa no tempo. Eu vou e volto", ela explica.
Agora, por que não fazer uma novela de época exatamente como
a época retratada, uma pesquisa exata. E emissora já tinha ambientado uma
novela em 1945 e a reconstituição, tanto cenográfica quanto de figurinos e
composição era exatíssima. Em VIDA NOVA (1988) estes detalhes eram fundamentais
e davam o tom na viagem no tempo do telespectador. A única personagem loura (e
não platinum blonde) daquela trama era uma prostituta interpretada por Vera
Zimerman, que tinha origens polonesas.
Ainda na parte do Cabaré, temos também um avanço no que se
refere aos musicais apresentados no palco. Quando a trama ainda estava na
primeira fase, portanto anos 30, a personagem Lola (Letícia Spiller) apareceu
cantando “Copacabana”. Nada ruim se não fosse o fato de que esta música foi
composta por Barry Manilow no auge da discoteca em 1978.
Agora nos anos 40, é Aurora (novamente) que tem o seu famoso
número antecipado no tempo. A personagem interpreta “Fever”, canção que ficou
famosíssima na voz da cantora americana Peggy Lee apenas no final dos anos 50
(novamente).
E por falar em trilha sonora, a da novela não fica muito
diferente do que é apresentado na história. As músicas escolhidas são uma
viagem pelas mais diferentes épocas, menos a que nos remete à trama. Sinto
muito quem não gosta de músicas antigas em trilhas de novela, mas sinceramente,
como se situar nos anos 40 ouvindo Novo Baianos cantando “A menina Dança” ou
então Tim Maia com “Eu Amo Você” ( aliás, pela terceira vez em trilhas)?
Canções com um estilo tão anos 70?
Enfim, poderia ficar horas lembrando coisas fora de época nesta
novela de época. Ainda mais por que a novela ainda não terminou e muita água
vai rolar.
Na contramão disto tudo a surpresa vem da concorrente,
Record. Lá Carlos Lombardi leva ao ar seu PECADO MORTAL. A trama ambientada nos
anos 70 (mais precisamente em 1977) os detalhes são de um rigor absoluto. Tudo
ali nos remete a década, desde os figurinos, cenários e expressões usadas pelos
personagens. E antes que me questionem, anos 70 também já é de época.