domingo, 29 de julho de 2012

ANTÔNIA QUE EU NUNCA AMEI



Felippe Regazio é um jovem talentosíssimo, transgressor, no sentido de idéias bem defendidas, ainda que divergentes às da maioria das pessoas numa sociedade tão, cada vez mais, demagoga. O Convidei a prestigiar o nosso blog com um dos seus textos ousados, instigantes. Pois bem, vejam que bela/poética história ele escolheu para tal. Valeu, brother! 


I
Só tinha um cigarro no maço e ainda estava anoitecendo, o que significa que eu ficaria sem cigarros de noite porque eu não tinha nem uma moeda. Eu já estava puto apenas por saber que eu ficaria puto mais tarde, fissurado, afim que a nicotina corresse o meu corpo como se corre os dedos pelo corpo de alguém o qual fazemos sexo. O que restava era acender aquele cigarro sagrado e caminhar. Tudo que o que leva o título de último se torna sublime, não é mesmo? Grande merda. As pessoas, a cidade, os faróis dos carros me tornando cego por um segundo e depois de novo e de novo e de novo... Os anúncios, a luz dos postes e o céu pintado de roxo como se estivesse doente. Isso é a calçada, a maldita calçada. Parei pra olhar o rio de cima da ponte e a vi parada, uns metros pra frente, sozinha, concentrada em si mesma há uns nove metros de altura, e, no entanto o corpo dela estava bem mais alto, atmosférico e curvilíneo, magro, branco, doce, sem que se toque os lábios, doce de retina. O cabelo preso, as mãos no parapeito, os seus olhos mortos, parados, castanhos. O cigarro estava no fim e, no entanto eu só havia fumado a metade.

-- Tem um cigarro aí, menino?
-- Oi?
-- Desculpa -- Ela se aproximou -- Tem um cigarro?
-- Ah! Putz, não tenho. Esse era o ultimo, desculpa. Mas toma, pode fumar o resto.
-- O ultimo, o resto, a desculpa...
-- Hein?
-- Nada. Nada não. Obrigado -- Tragou o cigarro e me devolveu.
Era o pânico, o corte e a faca, era a agulha embebida em morfina furando a minha pele. Aquele cigarro eram os lábios dela, pálidos, rosados, finos, com gosto de nicotina e saliva. A casa da língua dela era onde eu queria morar -- Tá indo pra onde? -- E assim ela me arrastou de volta à ponte, ao barulho da cidade.
-- Pra casa.
-- Oh! Esclarecedor, sem dúvidas...
-- Desculpe. Pro Bairro das Acácias.
-- Você sempre se desculpa pelos erros que nunca existiram?
 
Faz o seguinte, vamos andando, já que só tem esse cigarro aí.
-- Pensei que você estivesse esperando alguém.
-- E estava...
-- Então não seria incomodo eu acompanhá-la?
-- Não. Eu estava esperando alguém com um cigarro, só isso.
Andamos calados até que o cigarro acabou. O que não demorou muito.
-- Você é daqui?
-- Sim.
-- De onde?
-- Daqui.
-- Eu ri como um bobo alegre -- Agora me permita usar a sua frase: Esclarecedor, sem dúvidas...
-- Clara como o sol -- Ela respondeu amarga.
Então tornamos a andar calados. O silêncio se torna sempre duas vezes mais audível depois de cada tentativa de quebrá-lo, então a fim de não torná-lo insuportável, permaneci calado também, até que rompendo com as minhas meditações de onde por as mãos e como andar sem parecer um louva-a-deus sem uma perna, ela disse já virando na esquina em que eu parava para atravessar:
-- Bom, menino, eu moro pra lá. Obrigado pelo cigarro e pela companhia. Tchau -- E continuou caminhando para a direita.
-- De nada, tchau...  

Esqueci da falta de cigarros, de emprego, do inferno de chegar em casa e escutar milhões de "comos" e "ondes" à respeito de tudo e principalmente de mim. O lar é um manicômio em que todos os médicos são formados em engenharia. Atravessei a rua devagar vendo-a cada vez mais longe; caminhei olhando para a direita até que o bar e esquina cobrisse a rua paralela e eu só pudesse ver um monte de bêbados jogando sinuca de camisetas de times de futebol, bebendo e rindo alto pra não escutar a própria tristeza gritar. Sei lá, vai saber, às vezes o cara é um fodido com muitos mais problemas que os meus juvenis ridículos que acabam com minha paz de madrugada. Mas era ela, eu podia me ver segurando a mão dela, dormindo de conchinha com ela. Porra, que paranóia, eu havia acabado de ver a garota, e provavelmente não ia ver nunca mais. Era isso, o nunca mais, as coisas quando são as ultimas; as ultimas coisas também dão coragem quando sabe-se que não se tem nada a perder ao tentar torná-las, no mínimo, as penúltimas coisas. Voltei correndo vendo passar ao meu lado apenas cores borradas e os espectros dos postes que pareciam que iam esbarrar no canto dos meus olhos, e então ela andando tranqüila, meditativa, como se nunca estivesse onde o seu corpo está.

-- Hey! Menina! -- Ela continuou caminhando sem dar atenção -- Hey, porra! -- Insisti mais alto -- Ela olhou pra trás, e a me ver parou. Pensei: Que poder tem um palavrão, hein?
 
-- Desculpa pelo "porra".
-- Você e suas desculpas... -- Ela riu.
-- Bom, é que você, bem... Você, é... Enfim, você me passa o número do seu celular? -- Ela riu alto, mas amável.
-- Olha, faz assim: Você me passa o seu e eu te ligo, está bem?


Senti um frio na barriga, o mesmo desanimo anterior que a vida me proporcionara antes dela me pedir aquele cigarro. Mas não tem nada nesse mundo que me preocupa, por isso, mesmo mais triste, não me importei, afinal eu não havia perdido nada a não ser uma possibilidade, uma possibilidade dependente apenas do acaso. Foi a vida que perdeu, foi a calçada, o céu que agora já era escuro e sem estrelas, foi o relógio que perdeu, não eu.

-- Está legal, eu passo o meu.
Ela se despediu como antes, como se qualquer lugar fosse uma esquina que se pode virar simplesmente dizendo até mais. 
"Me passa o seu número"... que tipo de idiota ela pensa que eu sou? Esse é o clássico dos tocos tipo: "não quero que você me ligue" declarado e travestido em ansiedade para os mais idiotas. Foda-se, melhor era ir pra casa. Deu vontade de fumar outro cigarro, puta que pariu, um cigarro cairia bem, e eu ainda tinha que caminhar um bocado até chegar em casa. 

II
As mesmas pessoas de sempre se incomodando com qualquer um que se sinta bem sozinho porque elas não suportam a própria solidão, enchendo a face de cosméticos com nomes engraçados denotando luxo e beleza, rebolando o quadril dentro do jeans e fingindo estarem em busca do amor perfeito quando na verdade só buscam um remédio para a carência sem fim delas mesmas, um segundo pai, alguém que as ature, eu sei lá. 
Chama-se amor aquilo que nos aceita como é. E eu vendo como amor aquilo que ri de como somos. Todos iguais, todos maravilhosos, inteligentes, bonitos... Aquelas meninas com um futuro brilhante e certo, carreira promissora, pais influentes e nada disso me prende, nada disso me cativa. Todos nuggets de diversos formatos e tamanhos, mas com o mesmo gosto. Tenho preguiça de comer você, tenho preguiça de ligar pra você, tenho preguiça de pensar em você, no seu corpo perfeito, na sua fala macia e na sua pele sem defeitos. Interessava-me apenas um café e um papo, todas como objeto de estudo psicológico, cobaias - Como essas porras funcionam? - E era essa toda a minha afeição. Acordei confuso, com os olhos pesados e o celular vibrando na escrivaninha ao lado da cama produzindo um ronco artificial, bzzzzzzzzzzr, bzzzzzzzzzzr.... bzzzzzzzr... até cair no chão e continuar feito uma barata de plástico e tecnologia, bzzzzzzzzzr, bzzzzzzzzzr.... até que estiquei o braço pra fora das cobertas e resgatei a barata de plástico e tecnologia que ronca, olhei nos olhos dela e estava escrito: Número desconhecido.

-- Alô... 
-- Oi, menino! Lembra de mim?
-- Sim, claro! Como eu poderia me esquecer da voz de alguém que nunca me ligou.
-- Desculpa... Haha... Eu sou a menina do cigarro.
-- Menina do cigarro?
-- Sim, da ponte... lembra?
-- Nossa! -- não pude conter a empolgação -- Meu, pensei que você nunca fosse ligar!
-- Pois é, eu também - Ficamos em silêncio por alguns segundos.
-- Mas enfim, e aí, como está? - perguntei.
-- Bem... tô bem... Parei de encher a cara e trepar com qualquer um depois.
-- Nossa, por que eu não te conheci nessa época?
-- Pois é, você conheceu.
-- Ah... -- outra vez o silêncio.
-- Sim, faz um tempo desde que fumamos aquele cigarro. Um mês e uma semanas eu acho.
-- Tempão mesmo.
-- Mas então... Eu vou olhar o rio hoje e pensar em suicídio e gostaria de saber se você não estaria a fim de me levar um cigarro, tô tão sem grana...
-- Interessantíssimo, você me liga só porque está sem grana? Interessante mesmo, mas obrigado. Agora eu vou voltar a dormir, tá?
-- Não! Espera aí! Eu estava brincando.
-- Hum... - o canto da minha boca sorriu como uma flor que se despreguiça de manhã.
-- Olha, não foi isso que eu quis dizer...
-- Então quer dizer que vai rolar bebidas e sexo com estranhos, mesmo que o estranho seja eu?
-- Não, seu idiota! -- Ela riu -- Estava falando sobre você me encontrar na ponte pra conversarmos, ou só pra olharmos pra baixo e pensarmos em pular mesmo. Com alguém por perto eu me sinto menos idiota, sabe?
-- Hum... te distrai?
-- Tá bom! Eu queria ver você, porra! -- e novamente alguns segundos milenares de silêncio.
-- Claro, poxa. Você...
-- Então esteja lá às seis! Beijo, tchau -- e então ela desligou.
Agora o celular cricrilava como um grilo: tu, tu, tu, tu... e eu pensava: Às seis... é... Era o que eu ia dizer.
Cheguei e ela estava como antes, parada, de vestido marrom e os olhos castanhos, mais castanhos que todos os olhos castanhos que eu já tinha visto na vida. Já anoitecia, a eletricidade corria mais forte acendendo a cidade inteira. Ela ainda não tinha me visto. Joguei o cigarro fora e parei ao lado dela.

-- Você está atrasado.
-- Mas agora são seis horas.
-- Não me dê ouvidos, eu sei que são seis horas. Mas é que eu sempre quis dizer "você está atrasado" para alguém.
-- Poético...
-- Se você parar pra pensar que o tempo não existe, sim, é bem poético.
-- É verdade. Mas e aí, aonde vamos?
-- Eu não sei, foi você quem me chamou pra sair.
-- Eu? Foi você quem me ligou, esqueceu?
-- Não, mas um tempo antes você pediu o meu celular e disse que me ligaria, você me chamou pra sair, quando eu liguei, eu apenas confirmei.
-- Nada disso, eu só pedi o celular. Você não sabe se eu ia te chamar pra sair.
-- Você não estaria aqui se não fosse, né?
-- Não conte com isso - eu disse sério até que as covinhas em minhas bochechas abrissem as aspas de um riso meu e dela -- Você é difícil, hein! Está bem, vamos tomar um café na padaria Latté. Você toma café?
-- Tomo sim. Por mim tudo bem.
Tirei um cigarro do maço e o acendi, depois dei um cigarro a ela e partimos. A padaria não ficava longe, no entanto, rendia alguns minutos de caminhada. O tempo estava frio e exigia blusas e mãos entrelaçadas, a falta de um dos dois poderia ser incômoda, porém não insuportável. Tudo era apressado, frenético, urgente na cidade, e caminhávamos com contrastante tranqüilidade enquanto todos passavam ao nosso lado em passos largos, diretos sem sequer olhando para o lado, com suas mochilas, sacolas e preocupações, com o dinheiro do aluguel ou do crack no bolso. Gente, com toda a diversidade que a definição suportar.
-- Hey, sabia que os porcos não podem olhar pra cima?
-- Sério isso? - ela perguntou curiosa.
-- Tá, não que não possam, mas alguém tem que ajudá-los, entende?
-- Ah... Pois é, algumas pessoas sempre precisam de outras para enxergar mais além.
-- Porra, mas pense... Mancada com o porco. Imagine só, morrer sem nunca ter visto o céu?
-- É, para os porcos as estrelas não valem nada...
-- É...
-- Mas coitadinhos dos porcos, né?
Ela parecia tão menina e tão perigosamente mulher. Às vezes furiosamente muda, às vezes sutilmente falante. Ela era como uma gata de rua que desejamos ter em casa.
Os minutos se vestiam de segundos de forma que tive a impressão de ter levado metade do tempo comum para chegar à padaria Latté.
-- Que bonitinho. Do tipo que puxa a cadeira.
-- Pra você ver, etiqueta na padaria. Aliás, sempre que eu faço isso eu me sinto um lord, mas tenho a impressão que a garota está sempre pensando: "Porque esse idiota está puxando a cadeira pra mim?".
-- Não! É bonitinho mesmo. Digo, é interessante.
-- Foda-se a elegância, é só pra te impressionar mesmo.
-- Essa parte eu já sabia, mas me impressionou com a sinceridade, moço -- Nesse momento a garçonete me olhava solícita.
-- Dois cappuccinos por favor.
-- Com açúcar ou adoçante?
-- Açúcar.
Ela apenas observava calada; tão dentro de si mesma...
-- Você costuma ler? - perguntei.
-- Leio bastante, mas nunca o suficiente.
-- É, parece que sim. Chegou a ler O fio da Navalha de Somerset Maugham?
-- Não.
-- É muito interessante. Me fez pensar muito sobre as coisas durante um longo tempo.
-- Do que se trata?
-- É um romance. Não seria interessante dar detalhes. Leia e depois me diga o que achou.
-- Romances... Já viveu algum?
-- Já sim.
-- Surpreendente!
-- Por que?
-- Você não tem cara de ser dos mais românticos.
Minhas bochechas me delataram, então tentei desviar o assunto para a filosofia.
-- O amor é uma neurose, sabe? Não me agrada, não me completa. Mas às vezes não posso evitá-lo. Isso me deprime muito. Me sinto um pássaro que vive numa gaiola sem portas mas que não pode sair senão morreria na chuva forte de granito.
-- Pois é. Não suportamos o que nós mesmos sentimos. Mas por que acabou?
-- O quê?
-- O seu romance?
A garçonete chegou com os cafés. Esperamos em silêncio que fossem postos. Os dois foram postos do meu lado da mesa, mas não me importei, talvei fosse descuido da garçonete já cansada. Apenas afastei uma das xícaras para próximo dela e continuei:
-- Não foi um romance. Foi um relacionamento. Durou três anos, a amei loucamente, cometi os erros mais perdoáveis de toda a minha vida. Quando se ama todos os erros são perdoáveis, ou no mínimo justificáveis pelo simples "quando se ama". Eu era mais novo, ela três anos mais velha, cheia de sonhos, independente, forte, linda e eu... Ainda um menino interessado em skate, video games e com medo da faculdade.
-- Hum...
-- Com o tempo o relacionamento foi desgastando. Tudo o que eu tinha não era o suficiente pra ela, e não a culpo. Não é errado alçarmos vôos maiores, experimentarmos novas paisagens, comermos com as asas o algodão doce das nuvens. E eu havia me tornado uma pedra amarrada ao calcanhar dela.
-- E como, exatamente, acabou?
-- Com ela dizendo que não me amava mais, comigo sofrendo, correndo atrás pedindo pra voltar até ela arrumar outro cara e eu cair na real. Aí foram mais uns meses de fossa bizarra e aí acabou. No fim ficamos ambos solteiros e nos tornamos bons amigos.
-- Tenso... Não teve mais ninguém depois?
-- Sério que vamos falar das minhas ex? Bom, tive sim. Namorei uma carente sufocada pela família, depois me apaixonei por uma ilustradora que sofria de personalidade limítrofe e então me cansei. Eu não decidi me cansar, meu coração se cansou sozinho, por conta própria. Hoje, nem que eu queira eu me apaixono. Como já disse Bernardo Soares, "Tudo me interessa e nada me prende". De qualquer forma a gente sofre, dona.
-- É, você pode estar certo. Mas já pensou que a graça pode não estar em conseguir, e sim em tentar? Talvez tentar seja a finalidade e a própria vitória em si. O ter ou não seria só uma consequência variável.
-- Muito matemático, mas interessante.
-- Viu só.
-- Mas é, não ter pra sempre é todo o charme do ter.
-- Falando assim, até parece que você já teve muitos relacionamentos.
-- Não tive não. Nunca namorei.
Eu ri alto, desdenhoso, duvidando da afirmação dela.
-- Pode rir, eu estou falando sério. Nunca namorei ninguém. Tive apenas umas trepadas por aí ou uns casos que não duraram um mês. Eu não deixei. 
-- Não deixou o quê?
-- Sei lá, você pode chamar do que quiser. Amor, neurose, loucura, salvação. Seja o que for, eu simplesmente não deixei.
-- O seu café esfriou e você sequer tocou nele.
-- Ah, desculpa. Olha, pode tomar ele - E ela então me empurrou a xícara.
-- Desculpe, você disse que tomava café. Quer pedir alguma outra coisa?
-- Não, não estou com fome, obrigado.
-- Aconteceu algo?
-- Não, senão eu teria dito. Relaxa. Faz assim, termina esse café e vamos dar uma volta, pode ser?
-- Claro, vamos sim. Mas à propósito, como você se chama?
-- Antônia.
Rimos muito ao notar que eu não sabia o nome dela.
-- Você se chama José, certo?
-- Não, Yosef.
-- Ah, é quase a mesma coisa...
-- Nossa, com certeza. Só muda a escrita e a pronúncia. Aliás, como pensou saber meu nome?
-- Quando você passou seu número você me disse. Eu anotei como "José" no celular.
Depois do café andamos a esmo pela cidade, conversando, contando sobre o passado, sobre os planos futuros, os medos, os sonhos. Ela sempre tão tranquia, tão contida e madura. E eu sempre falante, sem me importar muito sobre o que ou como falava. Com medo do silêncio dela. Foi a primeira vez que nos beijamos.

III
Íamos à todos os lugares juntos, se bem que não íamos a tantos lugares assim. Costumávamos nos sentar debaixo de uma árvore que dava de frente para o rio, sujo e tranquilo. Fumávamos alguns cigarros e falávamos da vida, das pessoas que passavam, de livros ou das teorias que teciámos sobre o mundo antes de dormir. Um dia desenhei o rosto dela com giz de cera numa folha de papel A3, eram rabiscos que se uniam formando um semblante, não dava pra vê-la muito bem. Na verdade eu não tive coragem de entregar e mais tarde esse rabisco, se assim posso chamá-lo, me seria um tormento. Voltávamos sembre de madrugada pra casa, a rua vazia, às vezes uma ou outra alma coberta de sujeira da cidade passava cambaleando. Era bonito quando chovia, a rua refletia a luz amarelada dos postes de energia elétrica e deformava o reflexo do concreto como se o mundo fosse o espelho do próprio mundo. E talvez fosse. Eu sempre pareci meio lerdo, mas isso requer uma complexa explicação; na verdade eu sei exatamente o que deveria e o que seria bom se eu fizesse, as pessoas nunca são tão complexas a ponto de que não possam ser analisadas, as possibilidades de atitudes são enormes em qualquer situação, mas considerando o psicológico e composição de uma pessoa, mais o meio e a sociedade em que vivemos, essas possibilidades comportamentais caem drasticamente. O que me leva a pensar que quanto mais louco a gente fica, mais livre a gente é. Às vezes eu penso que os burros estão sempre errados, ingenuamente errados. Burros, não "pseudo-certos", porque como burros, eles não podem saber que o são. Mas os grandes pensadores, aquelas prostitutas do pensamento, também estavam errados. Nietzsche, Derrida, Deleuze, Sócrates, O Platão nem se fala, filho da puta! Eles apenas estavam menos errados que todo o resto. Imagine o quão orgulhoso não estaria Freud, após ter escrito "O Futuro de uma Ilusão" e "O mal estar na Civilização", de ver um sujeito fora de si esfaquear o próprio filho por causa de uma pedra de crack? É o choque entre dois mundos, entre duas datas distanciadas por mundos e muros de leis, o homem primitivo possuindo o homem contemporâneo em prol de um ideal moderno. Somos filhos do sexo entre um neanderthal e um sapiens. Somos as feras que pensam, os macacos que sabem contar, a linha limítrofe entre a doença e a própria cura. E o que isso tem a ver com ela e com a minha lerdeza, não é mesmo? Acredite, tem! E a minha lerdeza é exatamente essa: A minha preguiça de explicar a desconecção aparente entre o que eu penso e faço com o que esperam que eu faça ou com aquilo que deveria ser feito. Às vezes eu vejo as pessoas como animais domésticos, tão fáceis, tão previsíveis... Hahaha, está bem, não ajudou muito eu sei. Mas como eu dizia, as possibilidades comportamentais são aprisionadas, e, sendo assim, é fácil observá-las e escolher uma; mas mesmo sabendo o que ela esperava que eu fizesse, e sabendo exatamente como surpreendê-la, eu não fazia. 
Eu fazia aquilo que traria um conforto maior em relação ao que ela pudesse pensar, um meio termo, sabe? Talvez eu tivesse medo do depois, medo do medo dela, não de assustá-la, mas de não sustentar o próprio ato. Eu sei lá. Mas com o tempo as coisas fluiam, até que enfim já nos pegávamos, amaçávamos e quase trepávamos no meio da rua mesmo. Eu falava pra ela não só o que eu nunca havia dito pra ninguém, mas eu tinha vontade de falar pra ela o que eu não tinha vontade de falar pra mais ninguém, e aí é que morava todo o perigo. Como eu me conheci naquele tempo, puta merda.

-- Estive pensando, e seria legal te apresentar pra minha família.
-- Putz, isso dá um pouco de medo.
-- Não encana, vai ser tranquilo. E acho que você deveria me apresentar pra sua.
-- É, eu sei -- Ela lançou um olhar para o chão por um instante, depois continuou -- Eu vou gostar de conhecer sua família, certeza. Me avise quando e eu apareço por lá.
-- Ah, eu não sei se gostar você iria. Minha família é estranha, são meio grossos, desconfiados de tudo. Receio que poderiam te tratar até mal. Podemos sempre saber como eles agem, mas nunca quando vão agir. É como se em casa todos fossem loucos, só que mais livres que os loucos comuns. Todos meio neuróticos, eu sei lá. As pessoas daquele hospício sabem machucar.
-- Credo, Yosef! Não fale assim da sua família. Até porque é a única que você tem.
-- Nossa, que reconfortante!
-- Desculpa -- rimos os dois.
-- Você e seu humor afro descendente, Antonia -- rimos mais ainda -- Então fica assim. Eu vou falar com o pessoal de casa, e então prepararemos um almoço pra você.
-- Está bem.
-- Aliás, você leu o livro do Tarcísio Lage que deixei contigo?
-- Ainda não. Eu tô lendo "A Polaquinha" do Trevisan.
-- Só nas putarias, hein?
-- Meu, nem é tão putaria assim. É escrachado, saca? Mas tem putaria mais quente. O livro é foda, e só.
-- Sei. Se bem que o livro do Tarcísio também não é dos mais castos.
-- Viu só...
-- Vou te dar uns do Henry Miller.
Marquei o almoço em casa, todos ansiosos para conhecer a garota. O clima parecia receptivo, e isso me deixava feliz e ansioso. Nossa, ter realmente uma namorada, dessas coisas de ficar só com a pessoa, de se referirem aos dois falando apenas de um. Puta merda, que estranho, destrutivo e ao mesmo tempo tão bom. Mas ela não foi. O clima em casa de azul ficou cinza chumbo, fora o meu humor. Todos faziam piadas ou então tentavam me consolar e me explicar descrevendo o quão sujas eram as moças da minha geração, o que não ajudava em nada. Acabou que o almoço resultou em mais uma briga, o que não me surpreendeu. Brigávamos por qualquer coisa, e quando não havia sobre o que brigar, brigávamos por nada mesmo, só por esporte, sabe? Eu estava transtornado, metade de mim estava preocupado com o que podia ter acontecido, eu não acreditava que ela faria algo parecido comigo, ela sabia da importância daquela ocasião para mim e creio que era de importância igual para ela, e metade de mim estava tomado de raiva, raiva pura dela, por não ter ido, por ter me feito passar por semelhante situação. Eu queria o quanto antes esclarecer as coisas, era uma urgência sem fim em mim. As minhas preocupações almentaram quando o celular acusava aparelho desligado ou fora de área. Teria acontecido algo ou ela desligou de propósito? Me joguei na rua afim de procura-la. Me dei conta de que eu não sabia onde morava a minha própria namorada. Puta merda, eu não sabia nada dela a não ser o gosto e o nome. Que tipo de relacionamento é esse? A minha cabeça fervia, os meus olhos caçavam o rosto dela em cada rosto na rua e nada. Voltei pra casa já quase de madrugada, entrei em silêncio, naquela noite não dormi. O celular já somava mais de oitenta chamadas não completadas pra ela. Eu queria dormir, dormir para que o outro dia chegasse logo, mas não conseguia. A noite foi longa e silenciosa. 

IV
Sabe, dizem que a bebida estraga o homem. Devo discordar, a bebida salvou a vida de muita gente. Se eu não tivesse enchido a cara naquelas semanas, por exemplo, provavelmente teria matado alguém. Virar alcoólatra deveria ser considerado um enorme ato de amor; destruir a si mesmo pra não destruir os outros, ou simplesmente por covardia mesmo. Mas como eu ia destruí-la? Fazia meses que eu não tinha notícias dela. Nem de mim. Sabe o que é ruim em quando está chovendo muito forte? Que a gente não consegue fumar. Eu acho bacana aquele pessoal segurando o guarda-chuva com um cigarro na boca e tal, mas eu não tenho guarda-chuva. Guarda-chuva é uma coisa meio anti-vida, é como se estivéssemos sempre preparados; guarda-chuvas parecem um escudo contra a natureza, e eu não me importo em me defender, eu gosto de atacar. 
-- Aposto que sou mais velho que você e não estou falando sozinho assim.
-- Você não é mais velho que eu, é mais antigo; é diferente.
Às vezes passava um carro naquela rua vazia e ventava a velocidade nas minhas roupas molhadas fazendo-me lembrar que eu tinha tomado muita chuva, mas eu continuava no banco como se tivesse acabado de chegar. Estava tudo molhado, intocável, e a noite tornava cada gota de água que se esgueirava pelos galhos das árvores um inverno particular. O velho que conversava comigo se chamava Jerônimo, era a única pessoa que eu tinha vontade de conversar ultimamente. Setenta anos, aposentado, escritor fracassado e ex professor; Jerônimo era o que eu seria mais tarde e, no entando, ao mesmo tempo que me repugnava, me acalmava quando conversávamos. Nos conhecemos na casa de minha mãe, ele era conhecido dela, depois se tornou mais meu amigo do que dela.

-- Você tem que arrumar alguma coisa pra fazer, garoto.
-- Tenho escrito algumas merdas.
-- E estão ficando boas?
-- Vou repetir: algumas merdas.
-- Sobre ela?
-- É...
-- Você não falou mais dela, faz um bom tempo., 
-- É estranho, eu não me lembro como ela era. Não me lembro de mais nada, nem dos olhos, do cheiro, da voz, de nada, e no entanto sinto e dói sentir como se eu me lembrasse de cada detalhe, até mesmo da textura das unhas dela. No frio o cabelo dela ficava mais escuro, quase preto. Acho que nem ela sabia disso. Quando eu me esqueci como ela era eu a reinventei da minha maneira só pra poder continuar me lembrando.
-- Você precisa arrumar um emprego.
-- Eu preciso é arrumar uma editora, Jerônimo.
-- Que seja, mas ainda assim vai precisar de um emprego.
-- Merda. Tem um cigarro aí?
Eu ficava me dando a desculpa que era apenas para vê-la, saber como ela estava, porque na verdade eu já não podia fazer mais nada além de querer vê-la, e se visse, seria só isso. E se quando eu a visse, eu pudesse fazer alguma coisa, qualquer coisa, eu faria. Mas era a melhor desculpa que eu tinha para me dar, que eu precisava apenas saber como ela estava. À noite eu escrevia e bebia até ficar com raiva e me encolher no canto da cama e dormir de cansaço. Um dia, à tarde, Jerônimo apareceu por lá. Levou uns três livros e disse que me daria eles caso eu fizesse um café que saísse bom. Acabou que fiquei apenas com um livro. Não era apenas por ela, não tinha a ver com isso. As coisas eram uma merda sempre, independente dela. Minha família sempre se afundando nas próprias verdades, a sociedade empurrando com a barriga os cadáveres, os bancos, os trabalhos, empresas, e a cabeça sempre pequena das pessoas. "Você não pode falar assim, não pode pensar desse jeito, isso é arrogância", bla bla bla... E então te ensinam a ter orgulho de ser burro também? E quando ela se foi, tudo isso se tornou ainda mais nítido. Talvez eu não devesse me agarrar às coisas dessa forma. Amar é a forma mais dolorida de morrer por ser tão indolor que dói na alma. E tudo o que eu fazia desde então era escrever e mostrar para Jerônimo que lia sempre com boas opiniões e uma cara de quem estava preocupado comigo. E lá se foram longos meses morrendo no tédio de se estar vivendo.

V
-- Você deveria ter me dito! Deveria ter me consultado! Você não pode decidir a minha vida por mim dessa forma. Isso deveria ser considerado método de lavagem cerebral, você sabia?
-- Lavagem cerebral? Lavagem cerebral é o que você tem feito em si mesmo! Acorde! Você queria o quê, que eu te deixasse definhar na própria paranoia?
-- Que você tivesse me falado, e não mandado alguém me falar!
-- Te falar como, se nem eu sabia?
Jerônimo apenas observava calado na poltrona que compunha o jogo de sofá. Sua postura estava diferente, mudado, era agora mais clínico e analítico. 
-- A campainha está tocando...
-- Yosef, a campainha não está tocando.
-- A CAMPAINHA ESTÁ TOCANDO!
Foi um dos dias mais conturbados de minha vida, e não sei porque, hoje me lembro com especial carinho dele. Eu havia descoberto que Jerônimo na verdade não era amigo de minha mãe, e nem meu amigo, ele era apenas um médico analista contratado para que me avaliasse e tratasse indiretamente assim que minha mãe começou a ficar preocupada com meu estado de saúde mental. Hoje a entendo e teria feito o mesmo. Me lembro quando abri a porta, e era ela. Houve um longo silêncio.

-- O que você está fazendo aqui? -- Perguntei com tanta raiva que a fala saia espremida pela garganta fechada -- Como você descobriu onde eu morava? -- Ela não dizia nada. Apenas me olhava tremendo para não chorar.
-- Yosef, para com isso e entra!
-- Cale a boca! Você não está vendo ela aqui? Vocês vão tratar quem agora? Vocês é que são os loucos, vocês é que têm que se tratar! -- Jerônimo apenas observava sereno, e minha mãe segurava as pontas para não perder a linha -- Diz pra ele, Antonia! Diz pra eles como nos conhecemos, e se puder me conta em que puteiro você andou se metendo esses meses todos como se eu fosse um monte de merda que passou pela sua vida! -- Subi ao quarto e Antonia foi atrás, quieta e aflita.
Minutos depois Jerônimo entrou, eu não disse nada, apenas o olhei com tanto ódio no olhar que daria para ter escrito um ensaio sobre a natureza do ódio apenas com as retinas. 

-- Se você me escutar, eu me disponho a explicar-lhe o que está acontecendo -- Ele, Jerônimo, me disse sereno.
-- Você não vai ao menos cumprimentá-la? -- Ele não tirou os olhos de mim -- Tudo bem, diga.
-- Yosef, não existe Antonia -- ela o observava calada -- Ela nunca existiu. Antonia foi uma personificação de tudo o que você sentia e guardava misturado a tudo o que você tinha vontade de sentir. Antônia é todos os seus sonhos e todas as suas raivas personificadas, e você a ama porque no fundo você ama e precisa de tudo isso.
-- Isso é verdade? -- Perguntei a ela que permanecia imóvel -- Diz pra ele que esse velho que ele é louco. Diz! -- Antônia não dizia nada.
-- Yosef, veja bem, você sofre de sérios problemas psicológicos e eu vou precisar fazer uma série de exames e de análises demoradas cujo o sucesso e exatidão dos resultados vão depender apenas de você. Eu preciso que você pense nisso, o papel para autorização está com a sua mãe, basta assiná-lo -- Jerônimo fez um silêncio que me pareceu uma forma de piedade e pena de minha situação -- O seu pré-diagnóstico também está com a sua mãe, me desculpe -- depois saiu comigo gritando atrás:
-- Saia agora! Saia daqui, seu lunático! Vocês são todos uns débeis mentais!
Assinei meu tratamento duas semanas depois. Antonia estava sempre ao meu lado mas nunca mais nos falamos. Ela nunca mais foi embora. Eu entendi então que real era tudo o que nos provocasse uma sensação, tudo aquilo que pudesse fazer parte de nós, como cada coisa que vemos e faz, nem que por aquele instante, parte do nosso olhar, como cada coisa que pensamos faz, nem que por aquele instante, parte de nossa corrente sanguínea, como cada um dos nossos sonhos fazem parte do nosso presente e tudo se casa numa perfeição tão simétrica e pura que se torna um emaranhado de nós mesmos. Real é cada segundo que só pode ser visto quando morre, e é por isso que real é apenas o que sonhamos. Eu estava enrolado até o pescoço em meu próprio mundo e já não podia sair sozinho. Quando eu tomava banho ela estava lá, quando eu ia dormir ela se deitava ao meu lado, me acompanhava no café da manhã, na volta pra casa, nas caminhadas ao entardecer. Durante minha vida eu só amei Antonia, mas nunca mais a toquei, nunca mais conversamos. Passei a minha vida toda acompanhado pela minha solidão vestida de vestido marrom e sapatinhos pretos, e quando eu olhava o desenho do rosto dela no meu armário, era o meu rosto que eu via.
FIM

*Felippe Regazio




3 comentários:

  1. Muito bem escrito, parabéns pela sensibilidade, Felipe. Abraço!

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  2. Desde 2012 leio isto todo ano. Tornou-se uma das histórias favoritas minha e de minha noiva. Parabéns ao autor.

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  3. Eu sou Antonia e nasci em 29 de julho. Num domingo...e cinquenta anos depois este texto foi publicado aqui. E só hoje eu puder ler. Gostei muito! Em nome da Antonia eu agradeço!

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