sábado, 18 de fevereiro de 2012

Uma Saga Familiar Sob a Forma de uma Épica Minissérie



Em 1985, em comemoração aos seus vinte anos, a Rede Globo levou ao ar a mais ousada e grandiosa produção, até então: O Tempo e o Vento, adaptação da imortal obra de Érico Veríssimo (como homenageia a própria abertura da minissérie), mais especificamente da sua primeira parte, "O Continente", publicada em 1949.
A minissérie quebrou recordes e fez grande sucesso - especialmente entre a crítica especializada - , sendo, inclusive, premiada no exterior (prêmio Coral Negro de Melhor Vídeo no Festival de Cinema e Vídeo de Havana, em 1986). No Brasil, foi reprisada três vezes em diversos horários (1986, 1991 e 1995) e lançada em DVD quando do centenário de Érico Veríssimo em 2005 (não agradando à totalidade dos fãs da obra, ante a severa edição que suprimiu por inteiro uma das histórias, "A Teiniaguá"). E em janeiro de 2012, O Tempo e o Vento foi novamente reprisada, no Canal Viva, canal de TV por assinatura, na íntegra, em seus 26 capítulos.

DVD de O Tempo e o Vento lançado pela Globomarcas.

O roteiro, adaptado por Doc Comparato e transformando em vistosas imagens pela direção de Paulo José, valeu-se de quatro histórias de "O Continente": "Ana Terra", "Um Certo Capitão Rodrigo", "A Teiniaguá" e "O Sobrado". O texto primou por uma narrativa diferenciada: as histórias eram apresentadas fora de ordem, desenvolvidas separadamente e interligadas por meio de flashbacks e lembranças pessoais dos personagens.

De imediato, o telespectador é apresentado à fase mais longínqua da saga de Érico Veríssimo: "O Sobrado" , que se passa em 1895, tendo como plano de fundo a Revolução Federalista. O líder político da fictícia Santa Fé, o republicano Licurgo Cambará (Armando Bógus), está cercado em seu sobrado junto com a família sob a ameaça dos opositores do regime, os maragatos, comandados pelo coronel Bento Amaral (José Lewgoy). Alheia ao conflito, a matriarca da família, a velha Bibiana (Lélia Abramo), relembra seus antepassados e fatos marcantes dos Terra Cambará, refletindo sobre a guerra, a vida e a morte, enquanto admira a centenária figueira pela da janela de seu quarto. Esta fase é pautada pelos conflitos internos da família, acuada pela opressão dos inimigos e pelo estado de penúria que ali se instaura. Destaque para as bem dirigidas cenas de batalhas entre os grupos armados, que ainda hoje se mantém interessantes.

Lélia Abramo emocionou com a sábia velha Bibiama, unindo as arestas de O Tempo e o Vento com suas memórias.
Por meio das memórias da velha Bibiana, a narrativa retrocede a 1777, período em que o Brasil-Colônia ainda definia as suas fronteiras territoriais mediante violentas disputas entre portugueses colonizadores e espanhóis. Se inicia a história "Ana Terra" (Glória Pires), a avó de Bibiana, jovem introspectiva que vive com os pais e irmãos agricultores nas isoladas coxilhas gaúchas, e passa a maior parte do tempo a tecer na fiadeira. Nessa fase imperam os conflitos interpessoais sob a ótica feminina, especialmente pela personagem-título, descobrindo o amor com o índio Pedro Missioneiro  e também a crueldade dos homens, retratada na pele dos inimigos castelhanos, que queimam sua casa, matam seus irmãos e seu pai e a estupram. Destaque para a direção contemplativa, privilegiando a beleza natural da bucólica região sulista, e para o texto poético e sensível, muito bem interpretado pelo núcleo, especialmente por Aldo César (o chefe da família, Maneco Terra) e por uma jovem e serena Glória Pires.

A jovem Glória Pires como Ana Terra.
 Em seguida, com a decisão de Ana Terra de reconstruir sua vida em um novo povoado (a futura Santa Fé), a história avança no tempo, mais precisamente para 1828, ponto de partida da história "Um Certo Capitão Rodrigo". O Capitão Rodrigo Cambará (Tarcísio Meira) é um virtuoso, sedutor e alegre militar que acabou de voltar da batalha e pretende se estabelecer em Santa Fé, se chocando com os poderosos da região em razão de seus liberais costumes. Imediatamente se apaixona pela jovem Bibiana (Louise Cardoso), neta da já finada Ana Terra, disputando-a com o seu noivo Bento Amaral (aqui vivido por Breno Bonin). O militar vence e se casa com a moça, vivendo um grande amor, por vezes conflituoso, já que não abandona a vida mundana. Nesta fase, se visualiza a formação do povo gaúcho, perpassando a Revolução Farroupilha e a imigração europeia. Mostra um interessante retrato do típico homem gaúcho: libertário, decidido, virtuoso e guerreiro, muito bem representado por um inspirado Tarcísio Meira.

O sedutor Capitão Rodrigo (Tarcísio Meira) e sua amada Bibiana (Louise Cardoso).
Com a morte do Capitão Rodrigo, a história migra para 1853, onde se desenrolam os acontecimentos de "A Teiniaguá". A Bibiana de meia-idade, aqui vivida por Lilian Lemmertz, já calejada pela vida, arranja o casamento do filho que teve com o Capitão Rodrigo - o demasiadamente sensível Bolívar (Daniel Dantas) - com a bela e mórbida Luzia (Carla Camurati), moça vinda da Corte que entra em conflito com a sogra em razão de suas excêntricas atitudes. O destaque fica por conta da complexa e intrigante psique de Luzia, apaixonada pelo perigo, pelo mórbido e pela morte, transformando a vida do fraco marido num suplício e enfrentando a racionalidade e a dureza da robusta Bibiana.

Com essa interessante estrutura do roteiro baseada na memória de seus personagens e a meticulosa direção de Paulo José, O Tempo e o Vento traduziu um verdadeiro espetáculo televisivo, coroado com um elenco estelar e incríveis atuações.

Armando Bógus e José Lewgoy estiveram ótimos como os políticos rivais e Tarcísio Meira, em uma sedutora atuação, exibiu um carismático Capitão Rodrigo. Carla Camurati  construiu uma fascinante, mórbida e misteriosa Luzia, com classe e exuberância. Louise Cardoso esteve sensível com sua amorosa Bibiana, enquanto Lilian Lemmertz  impressionou com a mesma personagem numa visão diametralmente oposta - dura, calejada pela vida atribulada e pelas sucessivas perdas, e até mesmo interesseira, materialista. Lélia Abramo brilhou como a velha Bibiana, expressando com emoção os momentos poéticos e de sabedoria da personagem, ligada à família e admiradora de seus antepassados, num apaixonante trabalho de interpretação.


Interessante, ainda, se mostrou o desenrolar da história: o Tempo e o Vento ilustrou, sobretudo, dramas pessoais mesclados aos fatos históricos, sem que estes sobrepusessem àqueles. Cada personagem vivia dado momento histórico inserido naturalmente naquele contexto de formação da cultura e da sociedade, de forma que o roteiro preocupava-se em mostrar como viviam e o que sentiam os personagens, e não em simplesmente narrar o entrecho político, como normalmente trabalhos dessa espécie se propõem. Não se tratou de uma minissérie meramente histórica, didática, mas uma obra sobre sentimentos humanos.


Tarcísio Meira, Louise Cardoso e Lélia Abramo.
O Tempo e o Vento, um das mais emblemáticas obras da Literatura Brasileira, cuja adaptação, difícil e trabalhosa por natureza, indubitavelmente merecia algo à altura de sua importância. Se não perfeita, a adaptação televisiva, ao menos, manteve o espírito e a essência da obra, contando com tudo o que havia de mais avançado e caprichado para a época, mantendo-se impressionante até hoje. A disposição e coragem de levar à frente um projeto dessa magnitude, e com êxito, há de ser louvado: alternando realismo e lirismo, e driblando as dificuldades inerentes ao projeto, O Tempo e o Vento proporcionou um verdadeiro espetáculo televisivo. E não seria diferente: para retratar uma importantíssima obra literária, somente uma produção épica poderia fazer-lhe justiça. E assim foi.


10 comentários:

  1. Assisti a edição do DVD e fiquei chateado por não haver "A teiniaguá" com a Lilian Lemmertz. Mas a minissérie é um primor, mereceu toda a repercussão, crítica e prêmios que recebeu.
    Lucas - www.cascudeando.zip.net

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    Respostas
    1. Eu gravei os capítulos nessa exibição pelo Viva, super válida essa produção... E também não compreendo esse corte de que vocês que assistiram em DVD tanto falam, mas talvez tenha sido por algum motivo de direitos de imagem, questões contratuais divergentes com familiares ou cosia parecida, imagino.

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  2. Belo tema, Felipe... que venham as próximas postagens! ;)

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  3. A Teiniaguá sempre foi cortada nas reprises e também no DVD. Além da exibição original, só foi ao ar em uma reapresentação no Canal Futura, no final dos anos 90, e agora no Viva. É minha fase preferida. O Tempo e O Vento é grandiosa. Um dos grandes produtos que a Rede Globo ofereceu aos seu público.

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  4. Felipe que texto maravilhoso!!! É quase uma tese sobre esta produção impecável da Globo!!!!!!!
    Bom eu sou suspeito para falar desta minissérie pois é sem sombra de dúvidas a melhor minissérie já feita pela emissora, com todas as restrições da época e com a simplicidade da produção comparada com as de hoje, é um trabalho clássico e perfeito.
    Esta minissérie é a que tem a transposição mais perfeita da literatura para a telinha, e olha que o trabalho não deve ter sido fácil. Os livros de O TEMPO E O VENTO são uma verdadeira saga da história do Sul, abrangem diversos períodos históricos e cada momento possui suas particularidades. Eu li toda a obra de Érico Veríssimo e esta minissérie serviu para formar e criar diversos leitores ávidos por conhecer mais sobre o autor.
    É um trabalho memorável inesquecível e essencial para quem gosta de boa tv e de boa literatura!
    Parabéns Felipe, adorei teu texto!!!!!!!

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Belíssimo texto, deu até vontade de assitir. Via de relance, e na época não gostei muito, a reprise de 1991. Agora no Viva por motivos de força maior não quis e nem pude acompanhar.
    Desta forma, anseio pela análise de outra obra prima da teledramaturgia, Os Maias. Essa, mesmo se não rever pelo Viva, lembro (e gosto) o suficiente para interagir melhor no que se refere à trama e adaptação em si.

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  7. Esse post me aguçou a curiosidade de ver a minissérie. Ainda não a vi!

    Como sempre, texto primoroso Lipe!
    Parabéns!


    Fábio
    www.ocabidefala.com

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  8. Felipe, ótimo texto! Como sempre, você sabe enaltecer o melhor de cada obra! Não acompanhei a série, mas pelo pouco que vi, é realmente uma grandiosa produção! Um grande abraço!

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  9. também é uma das minhas minisséries preferidas...achava legal tb o personagem misteriosamente feito pela Cammurati...mas adoro a primeira parte, a Ana Terra, feita magistralmente pela Glória Pires. E não consigo imaginar mais nnguém que não o Tarcísio qdo leio um certo capitão rodrigo. Vale também o amor represado da Beth Mendes pelo cunhado, Armando Bogus....os dois excelentes.

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