de José Vitor Rack
“Dizem que TV é feita para ser assistida aos pouquinhos, já que geralmente a pessoa que assiste está passando roupa, levanta para atender o telefone ou a porta, ou para não deixar queimar o jantar.
Eu vejo TV como quem vê cinema, sem interrupções.
Meu telefone não toca, quase não batem na porta. Mando a roupa pra lavanderia e como miojo. Ou pizza congelada. Ou sopa de caneca. Sorvete. Feijoada em lata, pipoca de microondas. Pringles. Coisas assim.
Nas séries americanas as pessoas solitárias geralmente são feias, gordas ou chatas pra caralho. Tipo a coreana baixinha da última temporada de House M.D. Na vida real, geralmente é tudo isso com alguns bônus a mais. Dentes mal cuidados, falta de habilidade para entabular conversas ou simplesmente consciência de que ninguém vale a pena no frigir dos ovos. O que redunda em chatice.
E amargor.
O que fode é que na TV nada disso é mostrado em cores vivas. Sempre há esperança, sempre há um roteirista esforçado, animado, bem nutrido e armado de clichês pra te fazer acreditar que sua vida estúpida e sem relevância pode ser salva pelos laços de ternura com o sexo oposto.
Ou com o mesmo sexo. Seja em forma de bromances, amizades ternas ou sexo gay mesmo. Nas séries até vampiro veado se dá bem. Sempre há uma porta, mesmo que ela seja a dos fundos.
Nas séries os amigos continuam se vendo mesmo depois que um deles se casa...
Na TV as pessoas são bonitas. Até as feias.
A caixinha de ilusões é traiçoeira. As pessoas sempre tem uma roupinha melhor no armário para aquele encontro. Na vida real, as coisas funcionam diferente. Eu uso minhas melhores roupas pra ir ao banco ou pra comprar ração do cachorro. Devo explicar que considero minha melhor roupa a camiseta preta do Motorhead e minha calça com ziper de plástico. Odeio camisa de botão.
Estou aqui, escrevendo esse monte de merda às três e meia da manhã porque minha televisão quebrou.
Amanhã vou comprar outra e voltar a ver muitas séries e muitos casais brigando horrores pra poder fazer as pazes depois, na cama, com aquela foda. Tomando minha cerveja e comendo meus snacks completamente só.
Só como ninguém é nas comédias românticas e nas novelas.
Normalmente só. Porque a exceção é ser feliz.
Normal sou eu. Humano, típico produto da civilização ocidental.”
Este texto faz parte de um romance. É o pensamento de um personagem amargo, solitário, deprimido. Não representa 100% das opiniões do autor, embora o mesmo declare que concorda com muita coisa.
Lindo e muito sensível. Amei cada palavra.
ResponderExcluirInteressante como o autor aponta como irrealidade as tramas das séries de TV, mas ele não percebeu que na nota explicativa abaixo, também deixa claro que no seu próprio romance, as coisas são irreais. Ele diz que não representa 100% sua opinião, mas sinto que o personagem solitário em questão é o próprio autor. Também sou autor. Estou errado?
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