Por Guilherme Fernandes
Nos primórdios da televisão brasileira, mais especificamente em sua fase
elitista (1950-1964), em que grande parte da população brasileira não tinha um
aparelho receptor do sinal televisivo - inclusive o preço era o mesmo de um
carro popular - o principal produto teledramatúrgico era o teleteatro.
Engana-se quem pensa que o teleteatro era apenas uma peça teatral na televisão.
Nos primeiros anos, o que se convencionou chamar de "Câmara Um" era
um formato em que apenas uma câmara agia como se fosse o olho de um espectador.
Contudo, os diversos profissionais ali reunidos, entre eles Lima Duarte,
Benjamin Cattan, Sérgio Britto, Walter Forster, entre outros – procuravam
descobrir o que hoje chamamos de linguagem televisiva.
Nessa época, como sabemos, a televisão era “ao vivo”. Cada praça fazia
sua programação. Mesmo que houvesse (e realmente havia) diálogo entre os
produtores, cada um fazia a sua maneira – não foi diferente com os teleteatros.
Os dois principais programas do gênero foi o TV de Vanguarda, na TV Tupi de São
Paulo, e o Grande Teatro Tupi do Rio de Janeiro, na TV carioca. O programa
paulista, sob direção de Benjamin Cattan e o carioca regido pela trupe de
Sérgio Britto.
As telepeças, em ambos os casos, apresentavam clássicos da literatura
nacional e internacional. Diversos eram os adaptadores. Entre eles, Walter
Durst em São Paulo e Manoel Carlos, no Rio de Janeiro. O cinema nesta época
também foi um grande influenciador tanto na escolha das peças como também na
questão da linguagem. Foi justamente observando (e, em princípio, imitando) os
ângulos cinematográficos que surgiu a linguagem da TV. Os filmes em cartaz (ou
os de grande sucesso) eram transportados para a tela da TV. O que não foi
nenhuma novidade. No tempo áureo do Rádio, haviam programas dramatúrgicos em que encenavam os grandes filmes, como o “Cinema em Casa” da Rádio Nacional.
O TV de Vanguarda e o Grande Teatro Tupi do Rio de Janeiro tinham uma
diferença fundamental. A produção paulista sabia da potência dos microfones,
então os atores eram orientados a falarem baixo, de forma que os ruídos na casa
dos espectadores eram mínimos. No Rio de Janeiro, ao contrário, os atores
gritavam, como se estivessem em um teatro convencional.
Temas polêmicos para a época, como a homossexualidade, foram debatidos
algumas vezes e é sobre isso que eu gostaria de focar. Duas telepeças (uma
carioca e outra paulista) chamou minha atenção, justamente por trazerem
“novidades” temáticas que não estavam delineadas nos registros anteriores.
Explico melhor.
A telepeça “O caso Maurizius” é antes de mais nada um livro do escritor
alemão Jakob Wassermann intitulado “Der fall Maurizius”. Em 1954, o diretor
francês Julien Duvivier lança um filme homônimo. Como já dissemos, o cinema era
uma das fontes para as peças televisivas. Em 1956 O caso Maurizius é apresentado no
TV de Vanguarda. Quatro anos depois, Sérgio Britto, no Rio de Janeiro, resolve
usar a adaptação de Durst para o seu teleteatro. Contudo, diferente das versões
anteriores (livro, filme e telepeça paulista), Britto cria um caso
homossexual. Na verdade, uma marcação de cena em que um cara mais velho seduz
um jovem (de dezesseis anos), e este não percebe que está sendo seduzido. A
marcação inclui diálogos em que a boca de um ator quase encostava com a do
outro. Vamos aos detalhes.
O texto de Wassermann basicamente retrata um julgamento errado. O juiz
Wolf von Anderst condenou Leonhart Maurizius por um crime que ele não havia
cometido. Tudo começa quando o pai de Leonhard, Paul Maurizius, encontra uma
testemunha ocular que prova que seu filho era inocente. Paul procura o juiz
para tentar reverter a situação, contudo, ele acreditando em seu veredito não o
escuta. O filho do juiz, o jovem Etzel, convencido da versão de Paul, decide ir
atrás da verdade. Etzel procura a tal testemunha ocular – o velho Waremme – e
tenta convencê-lo a dizer a verdade. Quando finalmente consegue, tudo foi em
vão. O juiz já sabia que havia cometido um erro, mas já era tarde para
corrigi-lo.
Sérgio Britto, em sua versão, fez com que Waremme, interpretado pelo
próprio Britto, seduzisse o jovem Etzel – papel que coube a Cláudio Cavalcanti.
Acreditamos que esse tenha sido o primeiro caso homossexual na dramaturgia
televisiva.
Outra telepeça que me chamou atenção por esses mesmos motivos, foi
Calúnia, apresentada em dezembro de 1963 no TV de Vanguarda. O texto original
(“The Children’s Hour”), que é uma peça teatral, foi escrito na década de 1930
pela norte-americana Lillian Hellman. A peça de Lillian chegou a ser censurada
em alguns países e estados norte-americanos. Em duas oportunidades, o diretor
Willian Wyler trouxe a peça de Hellaman para o cinema. O enredo é o seguinte.
Duas professoras (Martha e Karen) recém-formadas resolvem abrir uma escola para
garotas em uma fazenda. Lá elas conhecem o jovem médico Joe que as ajuda nessa
missão – inclusive Karen começa a namorar Joe. A vida tranquila das professoras
é interrompida quando uma aluna, Mary, que não queria ficar na escola, inventa
uma mentira para a avó, Sra. Tilford. Mary disse que Martha e Karen minha um
caso homossexual. Convencida de que a neta dizia a verdade, Tilford faz com que
todos os pais retirem suas filhas da escola. A mentira ganhou grandes
proporções. Ao fim, após perderem o processo, Martha disse a Karen que Mary não
estava errada e que ela era realmente apaixonada por Karen.
No cinema, em 1936, Wyler lança o filme “These Three”, contudo, nesta
versão, não houve nenhum caso homossexual – acredito que temendo uma possível
censura. A difamação realizada por Mary foi que Martha e Karen namoravam o
mesmo homem, o simpático dr. Joe. Provavelmente insatisfeito por não ter
contato a real história de Hellman, Wyler lança em 1961 o filme “The
Childreen’s Hour” (com Audrey Hepburn no papel de Karen e Shirley MacLaine como
Martha), dessa fez sendo fiel ao roteiro de Hellman. Ambos os filmes receberam
o título de “Infâmia” no Brasil. Contudo, as diversas representações teatrais e
a versão para a televisão, foi batizada de “Calúnia”.
Foi então, que em 1963, Benjamin Cattan resolve trazer o texto para a
televisão. Contudo, novamente diferente da peça de Hellman e dos filmes de
Wyler. Cattan introduziu um beijo entre as professoras no momento em que Karen
revela que é apaixonada por Martha. O beijo foi dado pelas atrizes Vida Alves e
Georgia Gomide. O registro da cena pode ser conferido nas biografias das
atrizes – contudo não existe nenhum registro fotográfico.
Ainda no teleteatro, apenas para registro, Vida Alves fez outra peça com
personagem homossexual. Trata-se de “Entre quatro paredes”, também apresenta em
1963 pelo TV de Vanguarda. A peça, originalmente escrita por Sartre (Huis-Clos)
também chegou a ter uma versão cinematográfica realizada pela francesa
Jacqueline Audray em 1954. A personagem lésbica era Inês, interpretada por
Laura Cardoso. Vida Alves foi Stela, uma mulher fútil e esnobe. Inês chega a
apaixonar-se por Stela, mas é rejeitada. Acreditamos que essa versão
televisiva, pelos registros que encontramos, foi bem fiel ao texto de Sartre,
sem as inovações que encontramos nos outros dois teleteatros que abordamos.
A história da nossa televisão ainda nos reserva grandes surpresas. Como
pesquisador, adoro aventurar-me nesse universo. Ainda quero descobrir mais
sobre os teleteatros. Aos que se interessarem pelo assunto, recomento o livro
“O Grande Teatro Tupi do Rio de Janeiro” (Ed. da UFJF, 2005), escrito pela minha
orientadora de mestrado Cristina Brandão.
Muito bom o texto e bastante interessante o tema da sua pesquisa. A única crítica que tenho a fazer é a falta de legendas nas fotos. No meio da leitura, fiquei me perguntando quem eram os retratados, mas sem alternativa tive que engolir as dúvidas. Enfim! Você é formado em Jornalismo, Guilherme?
ResponderExcluirOi Felipe, sou jornalista sim. As fotos foram uma gentileza do querido Isaac, responsável pela postagem. Elas não tem relação direta com o texto. São fotografias de outros teleteatros. Dos três que retratei, apenas o do Britto existe registro, mesmo assim sem a presença dele na foto.
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