terça-feira, 16 de julho de 2013

Talento que transcende o gênero

por Thiago Andrade


"O homem é um animal que finge - e nunca é tão autêntico como quando interpreta um papel." Hazlitt , William

Oficialmente, o teatro nasceu na Grécia, a partir de um culto ao deus da alegria e do vinho, Dionísio, ou Baco, para os romanos. Inclusive, foi Aristóteles, há uns três séculos antes de Cristo, o responsável pela primeira reflexão teórica sobre a natureza e os princípios que regem a arte dramática. Foi ele quem definiu os principais elementos de uma peça teatral: o pensamento, a melodia e a encenação, que de certa forma ainda prevalecem nas peças teatrais contemporâneas.

Da Grécia Antiga aos teatros de hoje, muita coisa mudou e muitas outras tecnologias surgiram, permitindo a criação do cinema, da televisão e da Internet. No entanto, em qualquer um desses meios somos espectadores da interpretação que os atores dão a seus personagens, independente do gênero que eles representam.

Em toda a história do teatro, penso no quanto a mulher foi prejudicada. Afinal, somente a partir do século XVII foi permitido a elas o direito de atuar. Entretanto, isso possibilitou ao homem uma atuação que vencesse o machismo e até mesmo os seus preconceitos, uma vez, que eram eles quem também interpretavam as personagens femininas.

Terence Stamp, como Bernadette, no filme "Priscila, Rainha do Deserto
E até hoje, muitos atores se desafiam e incorporam mulheres que fazem a história da dramaturgia mundial. Aqui, no Brasil, sempre tivemos homens fazendo personagens femininos nas mais diversas nuances. Mas qual seria a intenção por trás desse tipo de interpretação? Seria a de alcançar certo nível de caricatura ou mostrar que o talento pode, sim, transcender a questão dos gêneros?

Paulo Gustavo, como Dona Hermínia, em "Minha Mãe é Uma Peça"
Em 2013, com o lançamento do filme “Minha Mãe É Uma Peça”, Paulo Gustavo reforça essa discussão de maneira exemplar. Ao interpretar a personagem Dona Hermínia, uma mãe de família obcecada pelos filhos, ele coloca sua interpretação numa linha de equilíbrio entre o caricato e o verossímil.  Claro que a intenção do filme é fazer rir, mas em dados momentos você simplesmente se esquece que ali, na tela, se trata de um homem demonstrando todo o sentimento de uma mãe que se sente rejeitada por suas "crianças". Os figurinos, a maquiagem e até as perucas que beiram a perfeição, conseguiram dar uma veracidade numa personagem que, até então, chega próximo do ridículo. 


E olha que a Dona Hermínia nem é a única mulher interpretada por Paulo Gustavo, que no programa “220 Volts”, incorpora mulheres divertidas e de distintas personalidades, como a preconceituosa, porém, “rica, branca e hétera”, Senhora dos Absurdos.


Ainda no cinema e antes do próprio Paulo Gustavo, Ary Fontoura já mostrava sua genialidade como Dona Dina Rocha, uma matriarca maluca, em “A Guerra dos Rocha”. Marco Nanini e Ney Latorraca também mostraram sua porção feminina, em Irmã Vap, filme derivado da peça de maior sucesso de público da história do teatro brasileiro.

Ary Fontoura, como Dona Dina, em "A Guerra dos Rocha"

Caricato ou não, sempre foi e sempre será comum ver um ator travestido. O que pode visualmente parecer engraçado pode também ser sério e levantar bandeiras contra o machismo, contra o preconceito sexual ou contra velhos tabus. O importante é se ter em mente que o sucesso de um ator nada mais é que o reflexo do seu personagem.

Os grandes atores brasileiros parecem dispostos a fazerem suas personagens bem populares. Já em 1985, os próprios Marco Nanini e Ney Latorraca interpretaram as irmãs Florisbella e Anabela, respectivamente, na novela “Um sonho a mais”. Inclusive, a personagem de Latorraca beija o personagem do ator Carlos Kroeber, sendo este o primeiro "beijo gay" da televisão brasileira.

Ney Latorraca, como Anabela, na novela "Um Sonho a Mais"
Vinte anos depois, a novela “Explode Coração” traz Sarita, uma travesti vivida por Floriano Peixoto, que trouxe à tona um assunto sério, dando ao travesti um tratamento mais humano e com direito a um final feliz. E confesso que não acharia estranho se a inspiração de Glória Perez para escrever este papel tenha vindo do filme “Priscila, a Rainha do Deserto”, em que a transexual Bernadette, de Terence Stamp, encontrava o equilíbrio perfeito entre drama e comédia.

Floriano Peixoto, a Sarita Vitti de "Explode Coração"
Claro que se fosse citar os vários exemplos que existem dentro dessa temática, esse post ficaria por demais extenso. Até mesmo porque, são inúmeras novelas e seriados que já utilizaram desse recurso de interpretação, sendo alguns dos últimos anos a Dra. Percy, do talentosíssimo Miguel Magno, em “Toma Lá da Cá”, e seguindo uma linha totalmente diferente, temos "peluda e parruda" Dona Caca, do grande Miguel Falabella, no Sai de Baixo. Isso sem falar no seriado “Sexo Frágil”, com Wagner Moura, Lázaro Ramos, Lúcio Mauro Filho e Bruno Garcia se revezando nos papéis de “belas” mulheres. Já de um jeito totalmente gozado, temos a trupe do "Casseta & Planeta Urgente", com a paródia das principais novelas das 21h e críticas às sofridas mocinhas. Até no "Zorra Total",  podemos ver as mais sortidas criaturas, como a Valéria e o seu "ai como tô bandida". Lembrando desses casos isolados, me veio na memória a saudosa e divertida Velha Surda, de Ronald Rios, em a "Praça é Nossa".



Até algumas estrelas de Hollywood já encaram a proeza de dar vida a personagens do sexo oposto. John Travolta deu uma bela de uma "mama", no musical "Hairspray - Em Busca da Fama". Eddie Murphy foi um pouco menos feliz, em "Norbit". Mas convenhamos, tem como não amar a Mrs. Doubtfire, de Robin Williams, em "Uma babá quase perfeita"?

Robin William, Mrs. Doubtfire, "Uma Babá Quase Perfeita"
Bizarro ou não, caricato ou não, sempre houve espaço para que os homens pudessem interpretar mulheres que acabaram se tornando de verdade, pelo menos para mim. Quando um ator consegue se transformar numa figura sem gênero, ele demonstra toda a sua capacidade e talento em atuar. Afinal, essa é a função do ator, se anular para dar vida a outro alguém, independente de qualquer sexo, caráter ou propósito. E, particularmente, acho isso tão natural que me faz questionar: se a sociedade está pronta para pensar além do gênero na ficção, porque é tão difícil encarar esse assunto na realidade? Afinal, não somos todos atores e autores de nossas próprias vidas?

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