O século XX mudou os paradigmas da reprodução. Com o desenvolvimento das técnicas de Reprodução Assistida, a medicina desvinculou a sexualidade da procriação. O primeiro bebê de proveta nasceu em 1978, na Inglaterra. Era Louise Brown, um embrião que foi fecundado em laboratório, fora do corpo materno. Em 1984, nasceu a primeira bebê "feita" por fertilização in vitro no Brasil.
Em 1990, a sempre atualizada novelista Glória Perez lançou "Barriga de Aluguel". A proposta causou o estranhamento do público, mas a trama conquistou a audiência ao discutir o que é a maternidade. Naquela época (e ainda hoje) não havia nenhuma legislação específica para regular a Reprodução Assistida. Somente em 1992, o Conselho Federal de Medicina publicou a resolução 1358 com recomendações sobre os procedimentos de reprodução. Mas a resolução não tem "força" de lei.
Analisando "Barriga de Aluguel" com os parâmetros atuais, de acordo com última resolução sobre o assunto (1957/2010) foi totalmente antiética a inseminação de Clara e a utilização do seu útero para gestação da criança mediante pagamento. O método "Útero de substituição" é permitido pelo Conselho, desde que a doadora temporária do útero pertença à família da paciente. Em outros casos, o útero de substituição só pode ser feito a partir da autorização do Conselho. A estória da novela se fosse real e nos tempos atuais, denotaria conduta antiética dos profissionais e da clínica responsável. Além disso, a beneficiária ou paciente não poderia contar com o respaldo da lei.
A legislação brasileira considera como mãe aquela que gera. Tanto que para o registro em cartório, a parturiente precisa de um documento da maternidade detalhando o nascimento. Com o útero de substituição, a mãe que gerou o bebê que teria o direito de registrá-lo. Por isso, o procedimento feito a margem das normas pode trazer sérios problemas. Ainda assim, é praticado por aí.
Atualmente, o ordamento jurídico brasileiro leva mais em consideração o parentesco socioafetivo do que o biológico. Os pais, assim como na adoção, que se propõem a assumir o projeto de criar e dar afeto a uma criança têm prioridade. No caso de 'Barriga", a personagem Ana (Cássia Kis Magro) era quem sonhava com a maternidade, ao contrário de Clara (Cláudia Abreu) que entrou em conflito durante a gestação. Quem gerou foi Clara, mas quem desejou foi Ana. Glória Perez deu um final simbólico à trama, unindo as mães em prol daquela nova vida.
Uma espécie de guarda compartilhada foi a solução para a trama "Barriga de Aluguel" |
Já em "Escrito nas Estrelas" o foco foi a reprodução post mortem. Na trama embasada na doutrina espírita, o protagonista deixa seu sêmen congelado que, posteriormente, é inseminado no seu grande amor, Viviane (Nathalia Dill). Na época da novela, a resolução vigente (a 1358) não previa a inseminação após a morte do fornecedor do gameta. A resolução atual só permite esse tipo de procedimento se o homem deixar um documento autorizando a inseminação após a sua morte. Caso não deixe, só a justiça pode solucionar a questão, permitindo ou não. A filiação fica garantida, pois o Código civil relaciona esse tipo de fecundação. No caso da novela, não seria tão fácil, pois Viviane não era casada com o doador.
Reprodução post mortem foi retratada em "Escrito nas Estrelas" |
E, finalmente, "Fina Estampa". A reprodução na novela resume-se à doação de gametas e a conduta antiética da médica. Esther (Júlia Lemmertz), com problemas de fertilidade e sem o apoio do marido, busca na clínica de Reprodução Assistida a solução de seu dilema. Enquanto isso, o irmão da médica morre. Mas ele deixou o sêmen congelado. Beatriz (Monique Alfradique), namorada do falecido, resolve doar óvulos para a clínica de reprodução.
Só que Danielle Fraser tem a "brilhante" ideia de fecundar o espermatozoide do irmão no óvulo de Beatriz e inserir o embrião no útero de Esther. Aí está a ação antiética. Para completar, a secretária da médica informa à doadora dos óvulos sobre o procedimento.
Para começar, o sigilo dos doadores de gametas é garantido pela resolução. Ninguém pode saber a quem pertencia os óvulos ou os espermatozoides doados. A médica também cometeu um erro ao unir material biológico de duas pessoas conhecidas por ela e por motivos pessoais.
Quem gerou e desejou ser a mãe daquele embrião é Esther. Ela que construiu o projeto familiar. Beatriz, ao doar seus óvulos, renunciou a qualquer vinculação afetiva e familiar futura. Nesse ponto, uma analogia pode ser feita com a adoção, quando os pais biológicos renunciam ao poder familiar, à guarda dos filhos.
Esther é a mãe gestacional de Vitória e Beatriz, a mãe biológica |
Juridicamente, sem sombra de dúvidas, a mãe é Esther, pois ela gerou a criança (premissa gestacional). Beatriz renunciou aos seus direitos ao doar os óvulos e, a princípio, não teria nenhum direito sobre a criança. No entanto, a solução do conflito na novela pode ser outra, semelhante ao que ocorreu em "Barriga de Aluguel". Uma definição já está certa: Danielle Frases perdeu o seu registro profissional.
A falta de uma legislação específica, a imprudência e a conduta antiética de profissionais podem trazer sérios problemas, fazendo o sonho de ter um filho virar um enorme pesadelo.
acho muito legal quando a dramaturgia aborda temas tão reais e polêmicos quanto os citados. Belo texto, Paulinha!
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