sexta-feira, 17 de maio de 2013

SUSHIS, SONHOS E REALIDADE - Uma cena sobre televisão


Por José Vitor Rack 
APARTAMENTO DE ROSANA. SALA. INTERIOR. NOITE

Sentados no chão, em volta de uma mesa de centro posta como mesa de jantar, o casal GUTO e ROSANA, por volta dos 40, brincando e trocando beijos carinhosos, e CAMILO, rapaz bonito por volta dos 30, vestido como se tivesse vinte. Sobre a mesa vinho branco, taças já servidas, shoyu e hashis. TOM entra vindo da cozinha com uma travessa abarrotada de sushis e sashimis para festa de todos. Enquanto começa o diálogo, Tom coloca a comida na mesa, senta-se ao lado de Camilo e todos já vão se servindo, comendo e bebendo.

CAMILO - Como isso é bom...
TOM - Com todo o meu carinho para vocês. Aliás, com todo o carinho do sushiman que fez tudo isso, porque eu não sei nem limpar um peixe...
ROSANA - Precisa fazer mais comerciais, Tom! Se a cada comercial que pintar rolar um jantar especial desses...
TOM - Pra deixar tudo brilhando boa vontade só não basta! Uma flanela e o Lustra Móveis OK te dão o brilho que você merece!
GUTO - Só faltou o saquê. Se me avisasse com antecedência eu comprava.
TOM - Um vinhozinho tá ótimo...
CAMILO - (ERGUENDO UM BRINDE) Ao sushiman!
ROSANA - Ao comercial que o Tom fez e que pagou o sushiman!
GUTO - Ao artista brasileiro! Fudido, mal pago mas sempre feliz!
TOM - À amizade! E aos produtos de limpeza OK!

Brindam felizes e continuam entre sushis, vinho e brincadeiras.

ROSANA - (PARA GUTO) Cuidado que isso mancha!
GUTO - A gente se vende tão fácil... Estuda os gregos, estuda gênese, mergulha em Brecht, Stanislavski, pesquisa, mergulha de cabeça na arte... Pra quê? Pra fazer comercial de lustra-móveis.
CAMILO - Não desvaloriza o comercial do Tom! Nosso sushi dependeu disso.
ROSANA - Tá falando besteira, Guto.
GUTO - Não acho não. Eu me vendo também. Esse teatro infantil que eu  faço... Também é comércio. Não tem nada a ver com o teatro que me fez sair de casa e vir pra cá estudar. O ator brasileiro não é respeitado. Na França até direito a seguro desemprego os atores de teatro e artistas de circo tem! E aqui? Somos indigentes.
CAMILO - Que baixo astral.
TOM - Mas isso tudo é fase. Nenhum de nós chegou ainda onde tem potencial pra chegar, é tudo uma questão de sorte, de oportunidade... O Camilo tem essa cara de galã, logo pega um monte de trabalhos. É só ele se esforçar mais, né???
CAMILO - Eu me esforço. Do meu jeito...
ROSANA - Jeitinho bem malandro esse seu... Eu gosto do teatro infantil. Não tenho essa frustração toda com Stanislavski, Brecht... Aliás, eu nem sabia que você sentia isso, Guto.
GUTO - O Tom quer a mentira, quer se enfiar de corpo e alma naquela caixa de ilusões que é a
televisão. Novela!
TOM - Verdade. Vem ni mim, mentira! Tô doido pra fazer televisão.
CAMILO -  Quem não quer?
TOM - É. Quem não quer?
GUTO - Eu não quero. Nunca quis... Você pegar aquele calhamaço de capítulos pra decorar recheado de frases que não querem dizer absolutamente nada? Eu não quero isso pra mim.
TOM - Tá bom então, Guto... Me engana que eu gosto.
ROSANA - O Fagundes só precisa de cinco minutos para decorar, ele nem leva o bloco pra casa.
TOM - Quem desdenha quer comprar, Guto.
GUTO - Verdade, a Rosana sabe como eu cheguei em São Paulo, já contei essa história pra ela tantas vezes. Eu vim de ônibus de Vitória até o Tietê...
ROSANA - (INTERROMPENDO) ... lendo Marta, a Árvore e o Relógio. Jorge Andrade, obras
completas. Sempre repete essa ladainha.
GUTO - Mas é verdade. Eu era louco por teatro desde pequeno.
CAMILO - Jorge Andrade fez muita novela, também.
TOM - Depois que a Luana fez aquele teste com o Jorge Fernando e passou, vê se você vê ela desempregada... Nunca mais, um trabalho emendado no outro! Tá na mídia, tá com Deus. Se você tivesse a oportunidade de estar na vitrine, exposto pra todo o Brasil te ver, conhecer o teu trabalho... Não seria bom pro seu teatro? Convites, mídia, contatos pra você montar O Telescópio, que é seu sonho, ao invés de ficar fazendo contos de fada eternamente?
ROSANA - Ih, Tom. Nem perde seu tempo. Ele é cabeça dura.
ROSANA - Cabeça dura e elitista. Novela pra ele é lixo.
GUTO - Não é não, que lixo a gente recicla. A novela foi ao ar amigo, acabou! A televisão vende sonhos, ilusões em cor de rosa. É tudo muito falso, muito plástico... O texto é repetitivo, o cara que escreve aquilo tem que ficar toda hora repetindo o nome de personagens, o porque de cada trama, é uma coisa muito didática para dona de casa entender.. Olha, ridículo...
ROSANA - Parece um crítico de arte dos anos 60 falando...
GUTO - A TV matou o Jorge Andrade. É massacrante. TV é um eletrodoméstico. Não dá pra raciocinar dentro daquilo. Aliás, nem dentro e nem em frente. E quem faz novela geralmente odeia fazer. Autores, diretores, elenco, fazem pelo dinheiro. Ninguém assiste novela em casa. Como é que podem fazer uma coisa que eles mesmos não assistem?
CAMILO - Sei lá, eu também gostaria de entrar, mas eu concordo um pouco com o que ele tá falando. Quer coisa mais falsa que café da manhã de novela?
TOM - É um complô... Camilo, você não fez a inscrição pra oficina da Globo?
CAMILO - O que tem a ver uma coisa com a outra? Verdade... De manhã eu como bolacha com Ovomaltine, às vezes nem como nada, almoço direto! E como eu, muita gente. Nem em hotel se serve café da manhã que nem os de novela.
ROSANA - (GRITA PARA GUTO) Tá manchando toda a roupa, mas é estabanado...
GUTO - Shoyu é assim mesmo, me deixa comer sossegado...
TOM - Pega o nabo aqui e esfrega.
CAMILO - Oi???
TOM - Esfrega o nabo.

Todos se entreolham por um instante e explodem na gargalhada, menos Tom que tenta se explicar.

TOM - Gente, quando cai molho de soja na roupa você esfrega esse nabo ralado que vem de acompanhamento que a mancha sai...
ROSANA - Pega o nabo, Guto!
CAMILO - Esfrega o nabo, Gutinho...
TOM - Povo palhaço!
GUTO - O Tom tá pagando o rango, hoje eu pego o nabo, tá Tom...
ROSANA - O que a gente tava falando antes do nabo?
GUTO - (RINDO MUITO) Novela.
TOM - Olha aí, já tá saindo a mancha...
CAMILO - Às vezes eu venho no metrô superlotado, aquele povo suado vindo do trampo... Aí sempre tem alguma tiazinha que fala assim: Preciso chegar rápido em casa, é hoje que o Bernardo Augusto vai pegar a Ana Malvina no flagra! Eu racho o bico. E é meio alienante mesmo... Quando a gente se envolve com uma novela esquece das coisas. A tiazinha tá pensando na novela e nem se dá conta de que o metrô tá lotado, que ela paga imposto mas que aquela bagaça não melhora...
TOM - Até parece que a culpa dos males da sociedade é da novela Camilo, me poupe.
CAMILO - Isso aqui é Brasil, gente. Cabral desceu da caravela e comprou os índios com espelhinho, chocalho. Aí começou a esculhambação.
TOM - Então, você mesmo está dizendo: a culpa não é da novela.
GUTO - Mas a TV não denuncia o que tinha de denunciar. Aliena. É vazia, sem conteúdo.
TOM - E você queria o quê? Que ela mostrasse apenas quadros de Dalí e Picasso ao som de Vivaldi? Tanta coisa errada nesse país, a TV não é a mais importante delas, tenho certeza.
ROSANA - Parece que foi ontem aquela novela O Rei do Gado, lembra? Tinha o senador...
TOM - Senador Caxias!
ROSANA - Então, aquela cena em que o senador tá discursando, falando sobre os sem-terra, denunciando aquela pá de coisa errada que tem no meio rural. Aí vai abrindo a câmera, abrindo, abrindo, e aí a gente vê que ele tava discursando com toda a energia pra uma platéia vazia. Nenhum colega dele ficou no plenário. Aquilo foi uma denúncia dupla, porque falava dos políticos e falava de reforma agrária. É coisa que o povão, a massa, só absorve quando algum autor coloca na novela.
TOM - Nossa, fiquei até arrepiado de lembrar.
GUTO - Mas pra cada cena como essa, quantas cenas de cafés da manhã ridículos como o Camilo acabou de falar, quantas cenas de sexo gratuitas, quanta repetição, é insuportável...
TOM - Até parece que o teatro e o cinema brasileiro só fazem obras primas! Teatro só faz sentido quando é livre, guiado só pela arte. Mas o quê que tá acontecendo? Tá cheio de peça caça-níqueis aí, todo mundo só produz se tiver subvenção... Um monte de autor brasileiro consagrado, como o seu amado Jorge Andrade por exemplo, não é mais montado. Agora somos emergentes e queremos musicais! Queremos a Broadway! Uma cultura que nem é nossa! Montam os ingleses, os franceses, sempre peça pra dois ou três personagens... E o autor brasileiro? E o ator brasileiro? Isso não é fazer arte pro mercado? Igualzinho às novelas.
ROSANA - É isso aí, arrasou!
TOM - Não vejo a hora de ser chamado pra fazer. Estabilidade, um contrato, salário fixo... E eu
gosto da novela exatamente como a novela é, bem brasileira, bem repetitiva, desse jeito aí mesmo. Televisão é diversão, Guto. Foi feita pra entreter.
GUTO - Não tem comparação entre o cinema e o teatro com a TV, Tom... TV é diferente. É concessão do Estado. Devia ter uma dramaturgia de melhor qualidade.
CAMILO - Mas é pra isso mesmo que o governo dá a concessão, tá ligado? Pro povo se ligar naquilo e não questionar nada.
TOM - (BRINCANDO) Ah, anarquista... Vou gravar você falando isso e mostrar pra Globo inteira! Nunca mais você entra lá nem pra fazer faxina!
CAMILO - Aí eu vou pra Record!
TOM - Tenho meus contatos lá também, CE tá fudido na minha mão...
ROSANA - Eu adoro televisão. Cresci vendo novela. Eu gosto, eu assisto... Eu era maluca com a Bruna Lombardi! Ai, era tão gostoso. Não vou mais atrás porque aprendi a amar o teatro. E acho que a idade também pesa, sei lá. Lembra Tom, das roupas da Viúva Porcina?
TOM - Turbante, laçarote, os anos 80 eram bregas...
ROSANA - Eu adorava! Minaaaaaaaaaaaaaa!
TOM - Quem matou Odete Roitman?
ROSANA - Quem será a próxima vítima?
TOM - Vamp, aqueles dentões!
ROSANA - Kubanacan, misterioso país del amor...
TOM - O Casarão! Te fiz esperar muito?
ROSANA - Quarenta anos!
TOM - (CANTANDO) Como uma deusaaaaaaaaaaaa...
ROSANA - Mandala! Vera Fischer era uma coisa de linda, deslumbrante...
TOM - Embarque nesse carrossel, onde o mundo faz de conta...
ROSANA - Nossa, aí você apelou. Novela mexicana?
TOM - Olé! Maria, Maria la del barrio...
GUTO - Cadê minha espingarda?
CAMILO - Volta pro chão, galera!
ROSANA - Adoro!!!
TOM - O Joãosinho Trinta disse muito bem: Quem gosta de miséria é intelectual. O povo gosta é de luxo! O público da novela gosta de ver o cafezão da manhã, as roupas exageradas, a limusine, o beijo, é assim mesmo gente. E quem está na televisão faz cinema, faz teatro e faz publicidade. Eu fiz meu lindo material, espalhei em todas as emissoras e tenho fé de que vai rolar! Do reclame de lustra-móveis para os Melhores do Ano no Domingão do Faustão, Troféu Imprensa, APCA, tudo! Escreve isso!
GUTO - Estudou tanto pra ter um sonho desses... Tomara que se realize! Pelo menos o sushi estaria garantido.
CAMILO - Nabo pra mais de metro, Gutinho!
ROSANA - E viva a novela!

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