quinta-feira, 10 de julho de 2014

Ei, Júlia - capítulo 4

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EI, JÚLIA
CAPÍTULO 4

WEB NOVELA DE
ISAAC SANTOS

ESCRITA COM A COLABORAÇÃO DE:

ALEX SPINOLA
LEANDRO BRASIL
RAFAEL BARBOSA
RAUL FELIPE SENNGER

CENA 1. APTO DE FLÁVIA E AURÉLIO. QUARTO DE JÚLIA. INT. NOITE
Continuação imediata do capítulo anterior. Flávia furiosa diante de Júlia e Aurélio.
FLÁVIA            - (a Júlia) Só agora eu tô vendo que eu tava criando uma cobra pra me picar depois.  Você não presta, garota, não vale nada! Eu exijo que você saia da minha casa imediatamente!
AURÉLIO        - (intervém, para Flávia) Também não é assim, Flávia. Você não pode simplesmente mandar a Júlia ir embora assim, sem mais nem menos. Ela tem direitos e/
Júlia interrompe Aurélio e encara Flávia, com raiva e determinação de dizer de uma vez o que já está querendo há muito tempo.
JÚLIA               - Pode deixar, seu Aurélio. (para Flávia) Eu não aguento mais as suas humilhações, dona Flávia. No início... No início até que a senhora parecia uma boa pessoa, me enganou direitinho. Mas logo eu percebi que tudo isso era só capa! Por dentro a senhora é mesquinha, egoísta, só pensa em si mesma! Tudo que faz ou deixa de fazer é em nome dos seus caprichos.
Flávia encara Júlia sem fala, muito surpresa. Reação de Aurélio adorando ver Júlia acabar com a pose dela. E Júlia continua:
JÚLIA               - Garantiu que ia conseguir vaga pra mim numa boa escola e nunca moveu um dedo pra isso! Também não contratou uma cozinheira pra me ajudar, queria jogar todo o trabalho nas minhas costas, me tratou como uma verdadeira escrava! (T) Me prendia em casa até nos fins de semana! Eu não tinha tempo nem de respirar direito, não podia nem sair um pouco pra me divertir; tinha que estar sempre aqui, à sua disposição!
Flávia finalmente encontra alguma coisa para falar:
FLÁVIA            - (trêmula) Ingrata! Você é uma ingrata, ouviu? Uma ingrata! Eu não trato os meus empregados assim. Não admito que/
JÚLIA               - (corta, furiosa, crescendo para cima dela, que se encolhe assustada. Aurélio ri) Não admite? Não admite que gente como eu suba no pedestal pra falar com a senhora? (T) Pois olhe, dona Flávia: eu sempre fui muito pobre, nunca tive nada na vida, mas não é por isso que madames nojentas como a senhora têm o direito de me tratar como bem entenderem! Eu sou gente, ouviu? Muito mais gente do que a senhora! (T) Pode ficar tranquila. Eu é que não quero mais ficar um minuto aqui na sua casa! Quero distância da senhora e da sua maldade!
FLÁVIA            - (assustada) Não precisa sair assim, de repente! Apesar de você me considerar essa pessoa horrível, eu sou muito justa, menina! Não vou deixar você sair assim à noite numa cidade tão grande e perigosa como Salvador. (T) Você fica essa noite. Pode arrumar suas coisas com tranquilidade. Amanhã antes de sair, me procure. Eu vou regularizar a sua demissão, da maneira como manda a lei.
Flávia olha com muita raiva para Júlia e Aurélio e sai do quarto. Júlia senta na cama, meio trêmula.
AURÉLIO        - Gostei de ver! Fez a dona Flávia cair do pedestal!
JÚLIA               - (preocupada) Não sei se eu fiz bem, seu Aurélio. Eu não tenho a menor ideia do que fazer agora... (pensativa) Voltar pra minha cidade eu não quero, de jeito nenhum! Não quero mais depender da minha família...
Aurélio sorri pra Júlia como quem quer tranquiliza-la, mas ela continua preocupada.
Corta para:

CENA 2. FACHADA DO PRÉDIO DE TÉRCIA. INT. NOITE
Plano de localização do apartamento de Tércia.
TÉRCIA           - (Off) Pode levar a menina, Aurélio.
Corta para:

CENA 3. APTO DE TÉRCIA. SALA DE JANTAR. INT. NOITE
Tércia terminando de falar com Aurélio ao telefone.
TÉRCIA           - (ao tel) Eu dou uma olhada no cachorrinho... (pausa) Tá... Tudo bem... Beijo, tchau!
Desliga o aparelho e volta para a mesa onde Marcelo está jantando.
MARCELO      - (casual) Quê que ele queria?
TÉRCIA           - Nada demais. Vai levar uma moça com um cachorrinho doente amanhã lá na clínica. Sabe como é seu pai, né? Se eu deixasse, ele levaria todo cachorro que encontra na rua lá pra minha clínica. (ri e muda de assunto) E você trate de comer tudo, hein? Tô te achando tão magrinho...
MARCELO      - (ri) Por que que toda mãe tem mania de achar que o filho tá magro só porque tá longe delas, hein? (T) Já te pedi pra não se preocupar. Eu tô muito bem instalado lá no apartamento.          
TÉRCIA           - Quando você tiver um filho vai perceber o absurdo que tá me pedindo. Depois que a gente bota um filho no mundo é impossível não se preocupar.
MARCELO      - (ri) Tá bom, mãe tá bom. (T) E o papai, hein? Será verdade o que um amigo lá da academia me contou?
TÉRCIA           - Do que você tá falando?
MARCELO      - Do casamento dele com a Flávia. Parece que tá por um fio.
TÉRCIA           - (com certa ironia) Engraçado como logo ficamos sabendo dessas coisas pelos nossos amigos, né?
Marcelo percebe a crítica velada da mãe e prefere não responder. Continuam jantando.
TÉRCIA           - E as coisas lá na faculdade, como estão?
MARCELO      - Tudo bem, mas eu não vejo a hora de ser chamado pra tomar posse na Universidade Estadual lá de Feira de Santana.
TÉRCIA           - Isso se antes você não passar em algum concurso da Federal daqui de Salvador.
Marcelo sorri e olha atentamente para a mãe.
TÉRCIA           - (ri, incomodada) Quê que foi, Marcelo?
MARCELO      - Olha, mãe, longe de mim querer me meter na tua vida. Mas... Bom, quando é que você vai voltar a pensar em si mesma, hein? Arranjar uma pessoa legal, namorar, ser feliz... Eu sei que você é plenamente realizada na profissão, mas só isso não é suficiente.
Tércia tenta disfarçar o incômodo com a pergunta do filho e sorri, embaraçada.
TÉRCIA           - E como é que você pode saber se eu já tô ou não com alguém, já que não tá o tempo todo comigo?
MARCELO      - Ah, mãe, essas coisas a gente/
TÉRCIA           - (corta, deixando claro que quer mudar o rumo da conversa) E você, hein? Como é que tá? Rodeado de gatinhas como sempre?
Marcelo percebe a intenção da mãe e resolve não insistir mais. Não quer invadir a vida íntima da mãe.
           MARCELO      - (ri) Não se preocupe. Seu filho continua o queridinho das mulheres. Chove gata na minha horta!
Os dois riem, descontraídos. Tércia olha para Marcelo como quem diz: “vocês não prestam hein?”. Na alegria dos dois, o corte:

CENA 4. ORLA DO FAROL DA BARRA. EXT. NOITE
Tércia e Marcelo caminham pela calçada, tomando um sorvete. Harmonia entre eles.
TERCIA         - Me lembro de quando eu e o Aurélio trazíamos você pequenininho pra praia. Corria descalço pela orla, chegava em casa todo cheio de areia.
Risos dos dois.
MARCELO    - Eu lembro que adorava esses passeios, mainha.
TERCIA         - Você amava! Entrava no mar e não queria mais sair de lá. E não queria saber de ficar no rasinho não, insistia pro seu pai te levar lá pro fundão. 
MARCELO    - Tão bom se lembrar da infância. Eu posso dizer que tive uma infância muito boa. Bons tempos!
TÉRCIA         - Que bom ouvir isso, meu filho!
Marcelo se adianta e para diante da mãe.
MARCELO    - (empolgado) Sabe o que meu deu vontade de fazer agora? (ela faz cara de quem está muito curiosa) De entrar no mar com você. Como a gente fazia quando eu era pequeno. Topa?
TÉRCIA         - (sorrindo) Tá falando sério? (ele faz que sim) No mar a essa hora, Marcelo?
MARCELO    - Deixa de ser chata, dona Tercia. A água deve estar uma delícia. 
Tércia olha toda boba para o filho.
TÉRCIA         - (nostálgica) Tô vendo aquele menino de sete oito anos na minha frente outra vez.
MARCELO    - E aí, vamos?
TÉRCIA         - Vamos!
Marcelo comemora, pega a mãe no colo e sai correndo em direção ao mar.
TÉRCIA         - (divertindo-se) Me põe no chão, menino!

A risada de ambos ecoa pela praia. Chegam ao mar, tiram os calçados e pulam na água de roupa e tudo. Jogam água um no outro. Divertem-se. Corta para:

CENA 5. CLÍNICA VETERINÁRIA MEU BICHO/RUA. EXT. DIA
Abre na fachada da clínica. Vemos Júlia descendo do carro de Aurélio com Tico em seu colo e entrando no prédio. Ela olha preocupada para o cachorro. CAM volta para o carro que vai saindo. Corta para:

CENA 6. CLÍNICA VETERINÁRIA MEU BICHO. SALA DE TÉRCIA. INT. DIA
Abre em Tico sendo examinado por Tércia. Júlia olha tudo, preocupada.
JÚLIA               - O seu Aurélio falou pra senhora que/
TÉRCIA           - (corta, gentil) Não se preocupe. Ele entrou em contato comigo ontem. Tá tudo certo. (continua examinando o cachorro) É, Tico... Você não tá bem não, amiguinho. (a Júlia) Ele vai ter que ficar algumas horas em observação aqui na clínica.
JÚLIA               - (nervosa, quase chorando) É muito grave, doutora? Pode falar, não me esconda nada.
TÉRCIA           - (preocupando-se em não assustá-la mais) Não precisa ficar assim. Ele só tá um pouco desidratado. Logo estará novinho em folha.
Mas Júlia já se desmancha em lágrimas diante dela, sem suportar toda a tensão em que está vivendo.
JÚLIA               - (chora muito) Desgraça nunca vem só. Além de perder o emprego, de não saber mais o que fazer da minha vida, o meu companheirinho ainda fica doente! (implora) Por favor, doutora Tércia, salve o Tico! Eu não vou suportar perder ele, não vou!
TÉRCIA           - (comovida) Calma, menina! (T) Fica aqui, tá? Eu vou ali levar o Tico pra minha equipe cuidar dele e já volto.
Tércia sai. Júlia continua chorando muito, arrasada. Corte descontínuo. Júlia já mais calma sentada diante da mesa de Tércia. Toma um copo de água com açúcar. Tércia sorri para ela.
TÉRCIA           - Tá mais calma?
JÚLIA               - Tô. Obrigada, doutora.
TÉRCIA           - (mais para si mesma) Quer dizer que a Flávia voltou a aprontar... (para Júlia) Mas não se preocupe, querida. Tudo vai acabar bem. E quanto ao Tico, ele logo vai estar bom. No máximo amanhã de tarde você já pode pegá-lo aqui. (olha o relógio) Eu só lamento não pode estender mais a nossa conversa. Tem alguns clientes me esperando...
JÚLIA               - Muito obrigada por tudo, doutora. Obrigada.
TÉRCIA           - Não tem nada que agradecer. Eu desejo sinceramente que logo as coisas se arranjem da melhor maneira possível para você. (T) Até amanhã.
JÚLIA               - Até amanhã.
As duas apertam-se as mãos. Júlia sai. Em Tércia pensativa, Corta para:

CENA 7. CLÍNICA MEU BICHO / RUAS/CARRO DE AURÉLIO. EXT/INT. DIA
Abre na fachada da Clínica. Vemos Júlia saindo do prédio. CAM segue Júlia caminhando pela calçada em direção a um ponto de ônibus. Algumas pessoas passam por ela. Vemos o carro de Aurélio se aproximando. Do ponto de vista de Aurélio, vemos a expressão de surpresa de Júlia ao vê-lo. O carro para. Júlia entra. Vemos o carro se distanciando. Corta pro interior:
AURÉLIO        - Eu resolvi te esperar.
JÚLIA               - E eu nem vi você, já tava até indo pegar um ônibus.
AURÉLIO        - Como foi lá com a Tércia?
JÚLIA               - Ah, foi triste ter que deixar ele lá, mas a doutora disse que não é nada grave. Amanhã já deve estar sendo liberado.
AURÉLIO        - Pode ficar tranquila, Júlia. A Tercia é ótima no que faz.  
Instantes. Júlia se entristece.
AURÉLIO        - E o que houve agora?
JÚLIA               - É que eu nem queria voltar lá no apartamento de dona Flávia.  
AURÉLIO        - Oxente! E deixar de acertar os seus direitos? Depois que tudo for acertado, aí sim. (T) Você já sabe pra onde vai e o que pretende fazer?
Na incerteza de Júlia, corta para:

CENA 8. CLÍNICA VETERINÁRIA MEU BICHO. SALA DE TÉRCIA. INT. DIA
Tércia está se despedindo de mais um cliente com seu bicho de estimação. Os acompanha até a porta. Fecha a porta e volta em direção ao chaise lounge. Recosta-se confortavelmente. Algo lhe rouba os pensamentos! Insert da cena 6 deste capítulo: Tercia com o olhar fixo em Júlia. Fim do insert.
Corta para:

CENA 9. APARTAMENTO DE FLÁVIA. COZINHA. DIA
Júlia está cumprindo suas obrigações normalmente: Ela prepara o almoço. Flávia entra. Sua voz carrega aquele tom meio áspero que algumas patroas costumam ter com seus empregados.
FLÁVIA            - E o Aurélio, ele recebeu meu recado?
JÚLIA               - (tom impessoal, sem soar agressiva) Sim, dona Flávia. Falei pra ele exatamente o que a senhora pediu: “que não precisa dele pra levá-la ao médico, porque já está se sentindo bem”.
FLÁVIA            - (mordida, mas sem dar o braço a torcer) E ele, o que disse?
JÚLIA               - (de costas, lidando no fogão, morde o lábio e sorri sapeca) Disse que tá ótimo assim.
FLÁVIA            - (atingida pela indiferença) É, está ótimo mesmo. (muda o tom) E o que você está preparando pro almoço?
JÚLIA               - (vira-se para Flávia, destampa as panelas e aponta) Arroz branco e um picadinho bem leve de carne com legumes. E na geladeira já tem salada de rúcula e tomate cereja temperada com azeite e limão siciliano.
FLÁVIA            - Ótimo assim. (já deixando a cozinha) E não se esqueça do nosso compromisso logo mais à tarde, viu? Contador, fazer sua rescisão tudo certinho e passar num banco pra depositar em sua conta poupança.
JÚLIA               - Esqueço não, dona Flávia.
FLÁVIA            - (insiste um pouco mais, discreta) E nenhum outro recado de Aurélio, alguma coisa sobre advogado?
JÚLIA               - (vira para o fogão, sorri novamente e aproveita pra se divertir um pouco com a agonia da outra) Nenhunzinho, dona Flávia.
Flávia dá uma jogada de cabelo e deixa a cozinha. Em Júlia em sua labuta corta para:

CENA 10. SALVADOR. STOCK-SHOTS. EXT. DIA/NOITE/DIA
Imagens aceleradas da cidade, destacando pontos turísticos: Elevador Lacerda, Pelourinho, Farol da Barra, Mercado Modelo, terminando na fachada do prédio de Flávia.
Corta para:

CENA 11. PRÉDIO DE FLÁVIA/CARRO DE AURÉLIO. EXT/INT. DIA
Vemos Júlia se despedindo fora de áudio do porteiro e deixando o prédio com suas malas. Aurélio está com o carro estacionado esperando por ela. Ele desce do carro e ajuda com as malas e ainda, cavalheiro, abre a porta pra Júlia. Entram e o carro começa a sair devagar. CAM vai buscar a imagem de Flávia que, mordida de ciúme, observa tudo da sacada do apartamento. Corta para o interior do carro: Aurélio em tom bem humorado, tenta animar Júlia.
AURÉLIO        - Eu não quis olhar pra trás, mas tenho quase certeza que a Flávia tava nos vigiando com aqueles olhos de medusa, doida pra transformar nós dois em pedra, pra não dizer coisa pior.
Júlia ri. Instantes de silêncio.
JÚLIA               - Me desculpe a curiosidade, seu Aurélio, mas... O senhor e a dona Flávia? Não tem mais volta?
Aurélio fica em silêncio um pouco, procurando uma resposta.
AURÉLIO        - Eu me faço a mesma pergunta todos os dias, Júlia, mas tô cada vez mais convencido de que a vida de casado não é pra mim. Eu nunca tive muita sorte no amor... (muda de assunto, bem humorado) E a senhorita, madame? Pra onde deseja que o chofer a leve?
JÚLIA               - O senhor tem sido um anjo, seu Aurélio. Eu nunca vou poder pagar o que o senhor tá fazendo por mim. (T) E quanto aquele incidente lamentável, eu já perdoei há muito tempo. Vamos esquecer aquela cena, tá?
AURÉLIO        - (comovido) Você é mesmo muito generosa, viu, Júlia?
JÚLIA               - Que nada... (e olha pela janela do carro, pensativa) Se tem uma coisa nessa vida que eu já aprendi há muito tempo, é perdoar...
Na melancolia de Júlia, olhando a paisagem pela janela, Corta para:

CENA 12. CLÍNICA MEU BICHO. SALA DE TÉRCIA. INT. DIA
Tercia recebendo Júlia e Aurélio. Cumprimentam-se.
AURÉLIO        - (meio saliente) Muita correria hoje, doutora Tércia?
TÉRCIA           - A de sempre, Aurélio. Mas meu ritmo sempre foi assim mesmo, um pouco mais acelerado que o seu.
AURÉLIO        - (ri) Valeu pela alfinetada, doutora, mas nem doeu.
Júlia de canto, só sentindo o clima entre os dois. Ela acha até alguma graça nisso.
AURÉLIO        - Diga aí, quanto é que ficou a conta do nosso amigão, o Tico?
TÉRCIA           - Aurélio, você sabe que quem trata disso é a minha secretária. Pode acertar tudo com ela.
AURÉLIO        - (voltando a fazer sua graça) Poxa, pensei que se eu tratasse diretamente com você, um aperto de mão e muito obrigado, já resolveriam a questão.
TÉRCIA           - (ri alto) Você está mais impossível do que o normal, Aurélio. Eu só não te dou a resposta que você merece porque estamos na companhia da suave Júlia.
Júlia se descontrai um pouco mais e sorri com eles. Tércia a encara com discrição e ri também.
AURÉLIO        - Bom, eu vou lá acertar com a sua secretária, que, diga-se de passagem, é um pitéu.
A secretária entra com Tico nos braços. O cãozinho já está todo serelepe e se assanha ainda mais ao ver Júlia, que vibra feito criança ao vê-lo, já o tomando carinhosamente das mãos da moça e o cobrindo de beijos e chamegos. Tércia, mais uma vez, se encanta.
AURÉLIO        - (a secretária) Além de linda, eficiente. Vamos lá, mocinha, acertar a conta.
Tércia o repreende com o olhar. Ele se manca e faz um discreto gesto de desculpas. Ele e a secretária saem. Júlia ainda a brincar e dizer palavras de carinho para Tico. Instantes, até que ela se nota observada por Tércia. Júlia a encara, olhos marejados.
JÚLIA               - Muito obrigada, doutora Tércia, a senhora foi um anjo da guarda pro meu Tico.
TÉRCIA           - Anjo da guarda é você, Júlia, por ter por ele esse amor tão lindo e incondicional.
Tocada, Júlia não consegue dizer mais nada, apenas deixa sua emoção fluir. Uma lágrima furtiva lhe escorre pela face. Tércia tem o ímpeto de secá-la, mas se policia. Júlia, de certo modo percebe isso, mas não demonstra, se recompõe, agradece e se retira. Corta para:

CENA 13. PENSÃO DA DONA JUREMA. RECEPÇÃO. EXT/INT. DIA
Abre na fachada da pensão. Carro de Aurélio está estacionado na frente. Ele está com o cachorro o colo, recostado na porta do carro. Júlia está vindo falar com ele.
JÚLIA               - (desanimada) Lugar bacana, preço muito bom, dentro do que posso pagar, mas... Também não aceitam o Tico.
AURÉLIO        - Que droga! Já é o quarto lugar que nós vamos. Quê que essa gente tem contra bicho, hein? (pausa. Aurélio olha para Júlia) Tem certeza que não quer voltar pra sua cidade?
Ela baixa a cabeça pensativa, sem responder. Aurélio não quer insistir.
AURÉLIO        - Bom, Júlia, por mim eu andaria a cidade toda procurando um lugar pra você ficar, mas é que eu tenho um compromisso agora e...
Os dois ficam em silêncio, desanimados. De repente Aurélio parece ter uma ideia brilhante.
AURÉLIO        - (animado) Já sei. Júlia, pode entrar agora na pensão, acertar a sua estada e pedir pra alguém vir te ajudar com as malas!
JÚLIA               - (sem entender nada) Quê que o senhor pretende?
AURÉLIO        - Confie em mim. Peça pra deixarem as suas malas no quarto e venha comigo. Acho que eu encontrei uma saída.
No sorriso esperançoso de Júlia, Corta para:

CENA 14. CLÍNICA MEU BICHO. EXT. DIA
O carro de Aurélio está estacionado. Júlia está dentro do carro com Tico. Tércia e Aurélio vêm saindo da clínica e se aproximam da janela do carro. Júlia se mostra um pouco constrangida com a aproximação deles.
TÉRCIA         - E aí, mocinha, o nosso bichinho aí tá curtindo esse passeio de carro? (Júlia dá um sorriso meio sem graça) Bom, Júlia, o Aurélio me explicou toda a situação. Eu pude perceber que você é uma garota muito bacana. (T) Especial. Por isso, já liguei pra Aurora, minha funcionária, dizendo a ela pra tomar uns copos de suco de maracujá... (faz um pouco de suspense antes de continuar) Nós vamos receber um hóspede bem animalesco por alguns dias, (faz um cafuné no cachorrinho) não é mesmo, Tico?
AURÉLIO      - (sorri pra Júlia) Não disse que ia resolver tudo?
JÚLIA             - (aliviada) Nem sei como agradecer. Muito obrigada, doutora Tercia.
TÉRCIA         - Por nada! Ó, eu tô indo almoçar em casa. Você e o cachorrinho vêm comigo. Vai ser até bom, pra ele já ir se familiarizando com um novo ambiente.
Julia, emocionada, desce do carro e dá um abraço em Aurélio.
JÚLIA             - Obrigada por tudo.
AURÉLIO      - Espero que tudo se ajeite.
TÉRCIA         - (a Júlia) E então, vamos? (Júlia faz que sim) O meu carro tá logo ali.
Tércia e Júlia seguem em direção ao carro. Aurélio entra em seu carro e vai embora.

Corta para:

CENA 15. APARTAMENTO DE TERCIA. SALA DE JANTAR. INT. DIA
Júlia e Tercia estão almoçando. Conversa ao meio.
TÉRCIA           - Mas eles não te obrigavam a frequentar a igreja, né?
JÚLIA               - Não, eu ia desde pequena com mainha. Meu pai já foi crente, mas isso faz muitos anos. Quando eu nasci ele já tinha se afastado da igreja. Mas assim, ele sempre fez questão que eu continuasse indo, incentivava.
TÉRCIA           - E quanto ao seu irmão?
JÚLIA               - Ah, o Osvaldo, é bem mais velho que eu, e mainha me contou que ele acabou seguindo o mesmo caminho de painho: se afastou da igreja. Isso foi antes de eu nascer também.
TÉRCIA           - E você continua frequentando?
JÚLIA               - Olha, dona Tércia, pra ser bem sincera com a senhora, eu continuo guardando alguma coisa de evangélica dentro de mim, mas não tenho mais aquele fervor que eu tinha. Não é dizer que ter vindo morar em Salvador virou a minha cabeça pelo avesso, mas eu acabei perdendo o costume de ir pros cultos.
TÉRCIA           - Você chegou a ir a alguma igreja aqui na cidade?
JÚLIA               - Fui umas duas vezes numa igreja lá na Graça, onde fica o apartamento de dona Flávia, mas não me adaptei.
TÉRCIA           - Ah, imagino. Graça é um bairro nobre, provavelmente as igrejas também acompanhem esse padrão mais elitizado. 
JÚLIA               - Eu nunca me imaginei no meio de tanta gente grã-fina e menos ainda, que algum dia seriam amigos meus. (percebendo que pode estar sendo ousada, se corrige) Posso considerar a senhora minha amiga?
Tercia sorri e, passando a mão sobre a mão de Júlia, diz:
TÉRCIA           - Você é mesmo cativante, Júlia.
JÚLIA               - Ah, a senhora é quem deixa a gente muito à vontade. (T) E o filho de vocês, hein? O seu Aurélio comentava dele de vez em quando.
TÉRCIA           Ah, Júlia, o Marcelo é uma das coisas mais bonitas que eu já fiz na vida, (se corrige) quer dizer, que fizemos (ri). Ele é lindo igual o pai. Aliás, puxou não só a beleza do Aurélio, mas é tão galanteador quanto.
JÚLIA               - Ele é professor, né? (Tercia faz que sim)
Ouvimos o cachorrinho Tico latindo em off.
JÚLIA               - O Tico já deve estar aprontando das dele.
TÉRCIA           - Mas a Aurora deve estar amando tudo isso. Desde que o Marcelo foi morar no apartamento dele, ficamos só nós duas nesse apartamento enorme. Isso aqui ficou muito parado!
As duas continuam a conversa fora de áudio. Corta para:

CENA 16. STOCK-SHOTS. EXT. NOITE
Imagens de ruas da periferia de Salvador, terminando num ponto de ônibus onde vemos Júlia descendo de um coletivo e caminhando pela calçada.

CENA 17. PENSÃO DE DONA JUREMA. QUARTO DE JÚLIA. INT. NOITE 

Abre em Júlia feliz, mais esperançosa. Música alegre invade a cena. Júlia está terminando de acomodar as suas coisas no armário. Instantes. Ela pega uma toalha, umas peças de roupa, saboneteira e sai do quarto. Fusão para:

CENA 18. PENSÃO DE DONA JUREMA. CORREDOR. INT. DIA
CAM abre na porta do banheiro no fim do corredor que dá pro quarto de Júlia. CAM vem se afastando devagar até vermos uma pequena fila com duas mulheres esperando o banheiro ser desocupado. Júlia vai caminhando na direção delas e fica por ali esperando a sua vez. A porta se abre, uma mulher sai e outra que estava na fila entra. A expressão de Júlia mudou. Ela agora está totalmente desanimada. Outra hóspede se aproxima e as duas começam a conversar.
HÓSPEDE      - Oxe, que bicho te mordeu, Júlia? Dia desses tu tava aí, toda animada. O que foi, diga?
JÚLIA               - Não é nada não, Maria, tô só pensando na vida.
HÓSPEDE      - Vá, deixe de bobagem, me fale! A gente agarrou uma amizade nesse tempo que tu ta aqui. Já te contei meus perrengues também. Amiga é pra isso, né?
JÚLIA               - Tô preocupada mesmo, Maria. Situação tá é preta pro meu lado. Dinheiro tá curto, nada de emprego. Todo lugar no comércio que eu bato, eles pedem experiência nisso, naquilo. Em casa de família só tão pegando com referência, e sei que dona Flávia não vai dar referência minha nem pro capeta.
HÓSPEDE      - (se benze) Ave Maria, não diga o nome do tinhoso não.
JÚLIA               - Ah, Maria, tá tudo uma droga pra mim. Vivo num passinho pra frente dois pra trás. Fui inventar de comprar presentes pra mainha e meu sobrinho. Eles ficaram numa alegria que só vendo! Mas não tive coragem de falar que tô desempregada, disse que já tava vendo outra coisa melhor. (T) Eu já até me arrependi de ter comprado aquele celular. Havia outros bem mais em conta.
HÓSPEDE      - Sai desse desânimo!  Sei que quando a gente tá no meio do problema, a gente fica cega, não consegue achar saída. Mas veja, fale lá com a dona da clínica, tu me disse que ela é gente boa, não disse? Até com o teu cachorrinho ela ficou, não é?
Júlia faz que sim.
HÓSPEDE      - Pois então, ela pode te indicar pra alguém. Conhecimento ela deve ter de monte! Se abra também lá com o tal de Aurélio. Vá, dê seus pulos, Júlia!
JÚLIA               - Já fizeram demais por mim. E também tenho vergonha de parecer que tô me aproveitando da bondade dos outros. Fui lá na casa da dona Tércia ver o Tico umas três vezes e nem voltei mais, pra não incomodar.
HÓSPEDE      - Largue de ser besta! Ninguém fez nada de graça por você. Você não deve nada pra ninguém.
JÚLIA               - (reticente) Sei não... Não é bem assim!
HÓSPEDE      - (imitando Júlia) “Sei não, sei não...” Depois que a coisa ficar roxa pro teu lado, você não diga que eu não avisei. Oxe, que se fosse comigo, eu tava era lá, na porta deles, pedindo ajuda, pedindo trabalho. Não é esmola, não, Júlia.
Júlia fica um instante calada, parece digerir as palavras de Maria. A porta do banheiro se abre, a mulher sai.
HÓSPEDE      - Vá lá, tome seu banho e pense no que eu te disse.
Júlia entra no banheiro e fecha a porta. Maria fica no aguardo da sua vez, meio que falando sozinha e com uma expressão no rosto que diz: “Mas essa Júlia é muito da besta mesmo”. E no ruminar silencioso de Maria corta para:

CENA 19. PRAIA. EXT. DIA
Mercedes e Rosana estão por ali, curtindo o sol. Júlia um pouco distante delas, parece estar chorando.
MERCEDES   - (a Rosana, apontando Júlia) E aquela moça, hein? Tá numa tristeza de dar dó há um tempão. Parece até que tá chorando...
ROSANA         - (sem ligar) A gente não tem nada a ver com isso, Mercedes. Vem, vamo entrar na água!
MERCEDES   - Tô com vontade, não. Vai você.
Assim que Rosana corre para o mar, Mercedes se aproxima de Júlia e a reconhece na hora. Sorri para ela.
MERCEDES   - Peraí, você é a... A filha da irmã Amélia, não é? A Júlia! 
Júlia enxuga as lágrimas e olha para Mercedes, sem reconhecê-la.
MERCEDES   - Tá me reconhecendo, não? Sou eu, Maria Mercedes, filha do seu João e da irmã Dalva. (T) Eu já era um pouco mais velha que tu quando saí de Entre Sertões, mas cidade pequena todo mundo praticamente cresce junto. Eu também ia com mainha lá na assembleia.
Júlia sorri ao finalmente reconhecer Mercedes.
JÚLIA               - Agora eu lembrei. Como tu tá bonita, Maria Mercedes!
MERCEDES   - Esquece o Maria, tá bom? Me chama só de Mercedes.
Júlia e Mercedes se abraçam, felizes. Depois as duas sentam.
MERCEDES   - (animada) Tô com vinte e quatro, e você? Peraí, não fala. Eu adivinho. Você deve ter uns dezenove, acertei?
JÚLIA               - (ri) Passou perto...
MERCEDES   - Tu lembra do dia que eu fugi da cidade?
Júlia confirma, com um aceno de cabeça. Mercedes continua, sempre muito animada:
MERCEDES   - Deve ter sido um acontecimento naquela cidade de Deus me livre, né? Ah, menina, foi uma aventura. Sabe que eu não me arrependo? Faria tudo de novo. (T) Eu já não tava mais me encaixando nos padrões de igreja, sabe? (pausa) Ok, eu era novinha, só tinha dezesseis anos, me arrisquei pra caramba. Mas aprendi muito nessa vida. Peguei carona com um caminhoneiro, fui parar em Sampa. Pense que loucura!
JÚLIA               - Loucura mesmo. (T) E você não pensa mais em voltar lá, rever seu pai?
MERCEDES   - Eu prometi pra mim mesma que nunca mais coloco os meus pés lá, desde o dia em que me pai me expulsou do enterro de mainha... (fica triste) Tadinha! Quando ela morreu, há coisa de cinco seis anos atrás, eu já tava aqui em Salvador, mas fiz questão de ir lá me despedir dela. (emocionada) E o meu pai... (interrompe-se) Você acha que isso é coisa que um pai faça com a filha, Júlia? Ainda mais no velório da própria mãe?
As duas ficam em silêncio um pouco. Mercedes tenta se refazer da emoção e volta a usar o tom animado na voz:
MERCEDES   - Agora me fala de você! Tá bonitona, hein!. Mas eu tô te achando triste. Você tava até chorando, né? Me conta: o que foi que houve?
Corte descontínuo: Rosana também está sentada ao lado das duas. Júlia acaba de expor sua situação.
JÚLIA               - E é isso. Eu tô me sentindo completamente só, desamparada. (T) Mas eu não quero voltar pra casa dos meus pais, entendem? Isso seria passar recibo que eu quebrei a cara, que eu não fui responsável o suficiente pra manter um bom emprego.
ROSANA         - (implica) O que não deixa de ser verdade, né?
MERCEDES   - (irritada) Para com isso, Rosana, que coisa! (a Júlia) Olha, Júlia, eu acho... Eu acho que a gente pode te ajudar.
ROSANA         - (surpresa) Como assim?
MERCEDES   - (para Júlia, sem dar atenção a Rosana) Sabe, nós éramos três lá em casa dividindo as despesas com aluguel, comida, luz, água, telefone... Eu, a Rosana e a Sarita. E como a Sarita foi pra Espanha, eu acho que/
ROSANA         - (corta) Mas essa menina não tem nada a ver com a gente, Mercedes! Nem de longe lembra a Sarita!
MERCEDES   - (muito irritada) Olha aqui, ô Rosana, faz tempo que eu não curto esse papo de igreja, mas se tem uma coisa que eu aprendi e não quero nunca me esquecer é amar ao próximo. E eu não me esqueço que um dia eu já estive em situação parecida. (a Júlia) Fica com medo dessa turrona não, Júlia. Ela adora implicar com todos, mas no fundo, bem no fundo mesmo, é boa gente. Pode contar com a gente, Júlia!
ROSANA         - (rabugenta) Fale por você, tá?
Mercedes e Júlia riem. Rosana permanece emburrada. Corta para:

CENA 20. STOCK-SHOTS. EXT. NOITE
Mais imagens da periferia de Salvador, terminando na fachada da casa de Mercedes.
Corta para:

CENA 21. CASA DE MERCEDES. SALA. INT. NOITE
Rosana está sentada no sofá, fazendo as unhas. Mercedes chega com Júlia trazendo suas bagagens.
ROSANA         - Caramba, pensei que não chegassem mais hoje!
MERCEDES   - Ônibus, minha cara! (a Júlia) Vamo botar essas malas ali no quarto, Júlia. Aproveito pra te mostrar nosso modesto barraco, que é pequeno, mas limpinho. (elas riem)
Instantes em Mercedes mostrando os cômodos da casa pra Júlia. Elas voltam pra sala.
ROSANA         - Agora vai logo tomar teu banho, Mercedes. (a Júlia) Senta aí, Júlia.
MERCEDES   - É, vou me jogar embaixo do chuveiro. (a Júlia) Fique à vontade, Júlia.
Mercedes se retira.
JÚLIA               - Cês vão sair hoje ainda?
ROSANA         - Vamo. É difícil a gente não sair à noite.
Rosana olha pra Júlia e a percebe ainda pouco à vontade.
ROSANA         - Ó, tá com fome? (Júlia faz que não) Quando quiser, tem comida lá na cozinha. A gente dá um duro da porra, mas graças a Deus o armário e a geladeira tão sempre abastecidos.
JÚLIA               - Quem cozinha melhor, das duas?
ROSANA         - Modéstia à parte, acho que sou eu. (as duas riem) A Mercedes conversou tudo direitinho contigo?
JÚLIA               - Ela me disse que vai explicar melhor umas coisas.
ROSANA         - Ó, como você ainda não conhece ninguém da vizinhança, não abra a porta pra ninguém, quando a gente sair. (Júlia faz que sim) Tá vendo (aponta) aquele pato de louça na estante? Tem uma cópia da chave, se você precisar.
Continuam a conversa fora de áudio. Corta para:

CENA 22. STOCK-SHOTS. EXT. DIA
Mais imagens da cidade, terminando na fachada da Clínica. Corta para:

CENA 23. CLÍNICA MEU BICHO. SALA DE TÉRCIA. INT. DIA
Júlia diante de Tércia. Conversa ao meio.
JÚLIA             - Fazia um tempão que eu não via essa amiga. Encontrar com ela assim, do nada, foi coisa de Deus. Parece até coisa de novela.
TÉRCIA         - (sorrindo) Parece mesmo.
JULIA             - E o cantinho dela... É tudo muito simples, uma casinha pequena. Mas é aconchegante. E, bom, agora que eu já consegui onde ficar. Eu acho que...
TERCIA         - Que não é mais necessário que o Tico fique lá em casa. (Júlia, constrangida, faz que sim) Quando você me disse que havia encontrado um lugar, imaginei que fosse me dizer isso. (T) Ao mesmo tempo em que eu fico feliz por você poder estar junto de seu cachorrinho de novo, eu... Não posso esconder que, fico um pouco triste.
Reação de Júlia.
TERCIA         - Talvez você não consiga me entender Júlia. Mas é como se o Tico... Como se ele fosse um elo entre a gente.
As duas se olham por um instante.
TERCIA         - (continua) As poucas vezes que você foi lá em casa, e que ficamos conversando, me fizeram muito bem.
Tempo em silencio. Tercia olha fixamente para Júlia, um olhar contemplativo, admirado. Júlia, um tanto perdida, baixa os olhos.
JULIA             - Eu vou ser sempre muito grata pelo que a senhora tem feito por mim e pelo Tico.
Tercia disfarça uma leve emoção e volta a sorrir, tentando desfazer o clima.
TERCIA         - Tudo bem, Júlia. Eu vou ligar pra Aurora e avisar que você vai pegar o cãozinho. Nós ficamos bem apegadas a ele. Espero que você vá ao meu apartamento sempre que puder, e leve o Tico pra visitar a gente.
JULIA             - Eu levo sim, pode deixar.
TERCIA         - Eu falei tanto de você pro meu filho, que ele tá curioso pra te conhecer.
Julia sorri um pouco sem graça, olha Tercia por alguns segundos que devolve o olhar, o mesmo de antes. Júlia desvia o olhar mais uma vez. Tércia suspira e pega o telefone.
TERCIA         - bom, eu vou ligar pra Aurora. Corta para:

CENA 24. APARTAMENTO DE TERCIA. SALA. INT. DIA
Júlia está parada no meio da sala, observando Aurora, que brinca com Tico, despedindo-se. 
AURORA      - (faz cafuné nele) Ô tiquinho, meu lindo! (a Júlia) Vou sentir uma saudade danada desse bichinho!
JULIA             - Eu imagino, dona Aurora. Mas eu vou ficar sempre trazendo ele aqui.
AURORA      - Bom, deixa eu ir lá pegar as coisinhas dele: Tem coleira, ração, brinquedinho. Dona Tércia quem comprou. Eu já volto.
JULIA             - Pode ir sossegada. Eu espero.
Aurora vai pra dentro e Tico corre atrás dela, festeiro. Sozinha na sala, Julia fica a olhar ao redor. Toca os móveis, admira a arrumação da casa. Vai até uma mesinha de canto onde estão alguns porta-retratos. Pega um deles, em que Tercia e Aurélio estão com Marcelo, ainda criança, na Disney. Pega outro, de uma foto mais atual de Tercia mostrando seu costumeiro sorriso. Júlia fica a admirá-la. Insert  da cena 23 deste capítulo. Tércia diz pra Júlia que sente como se o cachorrinho fosse um elo entre elas. Fim do Insert: Júlia devolve os porta-retratos na mesinha, suspira e fica a pensar, distante.

Corta para:

CENA 25. CASA DE MERCEDES.COZINHA. INT. NOITE
CAM abre numa folhinha (calendário) pendurada na parede, e depois nos revela a cena: Rosana a lidar num fogão vermelho de quatro bocas. Mercedes e Júlia sentadas à mesa. Clima pesado no ar. Júlia e Mercedes se olham. Rosana quebra o silêncio:
ROSANA         - (off) Olha, Júlia, você sabe que não sou de dizer nada pelas costas, então vou ser franca, a coisa tá ficando difícil.
Rosana senta-se à mesa junto com elas, traz consigo uma panela de macarrão com carne moída, e sem parar de falar começa a servi-las.
ROSANA         - Já faz quase um mês que tu tá aqui com a gente e nada de emprego. Eu sei que tá brabo de se arrumar um, mas minha filha, a gente tem que ser prática. E aí, como é que vai ser?
Mercedes não aprova o tom de Rosana, mas não a contesta.
MERCEDES   - Olha, Júlia, não ligue pro jeito da Rosana não, viu? (Mercedes faz um gesto para que Rosana pegue um pouco mais leve), ela é assim mesmo. Mas ela não deixa de estar certa, né?
Júlia, cabisbaixa, apenas faz que sim com a cabeça. Mercedes continua:
MERCEDES   - É como tu mesmo disse, já, já o pouco que tu tem, se acaba, e eu e Rosana não damos conta de manter a casa com mais uma pessoa e um cachorro, que querendo ou não também dá despesa, né?
Rosana acha graça nessa parte, mas se contem, Mercedes prossegue:
MERCEDES   - É gasto com ração, vacina que tem que dar.
Júlia ainda cabisbaixa.
ROSANA         - Oxente, Júlia, diga alguma coisa! Não vai ficar aí, se fazendo de vítima e eu mais Mercedes parecendo duas bruxas!
Júlia ergue a cabeça, faz força para não chorar, procura se manter firme, mesmo estando destroçada, não pelas cobranças das amigas, mas sim pelas rasteiras da vida nesses últimos tempos.
JÚLIA               - Vocês tão certas. Foram legais comigo quando eu mais precisei. Não vejo vocês assim, como bruxas não. (sua voz fica embargada a partir daqui) Eu lutei e vou continuar lutando, não desisto não. De um jeito ou de outro, eu vou dar a volta por cima. Bora lá, se vocês conseguiram, eu também posso.
Júlia não diz com firmeza, com alegria. É apenas resiliência. Mercedes e Rosana se entreolham. Elas sabem que não vai ser fácil pra Júlia. corta para:

CENA 26. PELOURINHO. EXT. MADRUGADA
Abre numa rua pouco iluminada, onde vemos alguns mendigos dormindo e usuários de drogas se drogando. Mais adiante, numa esquina, vemos uma viatura da polícia passando. CAM sai desse ambiente e nos mostra a vida noturna na praça principal: alguns bares ainda funcionando em atendimento a turistas e também moradores da cidade. CAM vai buscar Rosana e Mercedes que estão por ali.
MERCEDES   - Será que ela vai conseguir assim, de cara?
ROSANA         - Tô pouco me lixando! E que porra de banheiro demorado é esse?
Vemos então Júlia saindo de um bar. Veste-se com roupas justas, curtíssimas. Usa maquiagem excessiva e anda desenvolta, parecendo até outra pessoa, bem putona mesmo. Mercedes e Rosana olham impressionadas para ela, que está mais linda do que nunca, um convite ao pecado. Corte descontínuo: Elas estão caminhando pela Avenida Chile. Carro vem se aproximando devagar delas. Para. Elas olham pra dentro e reconhecem Marcelo.
MERCEDES   - Aê, Marcelo! Quanto tempo, hein! Tu sumiu, cara!
MARCELO      - Ando com uma falta de tempo que vocês nem imaginam.
ROSANA         - Ah, mas pra essas coisas a gente sempre encontra um tempinho...
MARCELO      - (ri) É exatamente isso que eu tô fazendo. (olha para Júlia com interesse) E ela, quem é?
MERCEDES   - O nome dela é Júlia.
MARCELO      - (a Júlia) Tudo bem, gostosa?
Júlia sorri, tímida e nervosa. Mercedes tenta livrá-la do embaraço.
MERCEDES   - Calma, Marcelo. A garota tá começando agora, não assusta ela.

Mercedes sorri para Júlia e pisca como quem diz: “Relaxa”. Corta para:

CENA 27. AVENIDA/CARRO DE MARCELO. EXT/INT. MADRUGADA
Abre no carro de Marcelo em movimento numa avenida da orla de Salvador.
ROSANA         - (off, safada) E aí, Marcelo? Acha que vai conseguir dar conta de três?
Corta pro interior do carro. Risos de Marcelo e Rosana, que está no banco do carona. Júlia e Mercedes no banco de trás. Júlia está tensa.
MARCELO      - Dou conta até de mais, Rosana! Parece até que não me conhece...
Os dois voltam a rir. Mercedes não consegue achar graça de nada. Júlia olha nervosa para Marcelo.
JÚLIA               - Por favor, para o carro. Eu não tô me sentindo muito bem.
MARCELO      - Relaxa, gatinha. Não precisa ter medo de mim, não.
JÚLIA               - (cada vez mais nervosa) Por favor, moço, para esse carro, eu tô passando mal.
Marcelo não lhe dá atenção. Júlia explode, descontrolada:
JÚLIA               - Para essa merda desse carro agora que eu quero descer!
MERCEDES   - Para, Marcelo. É melhor.
MARCELO      - (tranquilo, sem parecer malvado) me desculpe, Mercedes, mas eu não vou deixar uma gata dessas escapar assim. Não vou mesmo!
Rosana ri, maliciosa. Completamente desesperada e sem que ninguém possa impedir, Júlia, abruptamente, abre a porta do carro em movimento e se joga. Mercedes grita. Todos se assustam. Close de Júlia estirada no chão.

Corta.


FIM DO CAPÍTULO 4.


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