domingo, 1 de abril de 2012

NUM APARTAMENTO PERDIDO NA CIDADE... - PARTE II

de José Vitor Rack


“Marta é, para mim, aquele elemento da história que vem, modifica, transforma. Marta é um elemento transformador. Transforma as pessoas. É uma espécie de presença da História que vem e se modifica através do tempo. Ela é idealizada pois revela meu ponto de vista ecumênico sobre o mundo de hoje. Quer dizer, da união dos homens, do caminhar da humanidade para uma perfeição maior, de um futuro maior. E quando falo em futuro, não estou falando de trinta anos, que isso não é futuro. Estou falando de um futuro daqui a mil anos. O homem vai chegar a alguma coisa muito boa, porque o homem é fundamental: é ele quem faz a história, quem transforma o mundo e transforma a si mesmo. O homem vai chegar a esse ponto de maior perfeição, maior tolerância, sem preconceitos. Quero dizer que O Grito tem muito mais profundidade do que as pessoas possam imaginar, porque estão acostumadas a acompanhar uma ‘historinha’ e a não pensar. Na minha novela eu coloco problemas para serem pensados.”


Marta usa dessa tática por muito tempo com sucesso. Angaria mais aliados nas reuniões. Gente que entende o seu drama e que, graças ao susto de ter sua intimidade ameaçada, percebe que todos nós carregamos dentro de nós os nossos próprios gritos, as nossas próprias dores. E a deixam em paz. Vejam o que Marta diz a seu filho numa cena emocionante:

“Eles já se uniram um pouco mais, meu filho! O que tanto desejei... Vai dar certo! Você não vai sair daqui sozinho! Este prédio... Ele é como a cidade, o país, o mundo! Se está acontecendo aqui... É porque deve estar acontecendo em toda parte! Em cada prédio deve haver um grito tentando unir as pessoas! Não me agarrarei mais a você... não permitindo que morra! Vou devolver você à cidade... é ela que é sua verdadeira mãe! ... E gritos brotarão por toda parte!"

Ao final da novela, Estela (Lídia Brondi) é sequestrada e Marta, por conta do uso do interceptador telefônico, descobre pistas importantes sobre seu paradeiro. Ela procura Sérgio (Ney Latorraca) e confessa a posse do aparelho, explicando suas motivações. Sérgio localiza Estela e mata o sequestrador. Paulinho está muito doente. Para que Marta possa comparecer à reunião de condomínio em que Sérgio revelará a todos que o interceptador foi encontrado, o menino fica sob cuidados de Socorro (Eloísa Mafalda), mulher do zelador. Ela monta uma vigília de orações ao lado do garoto, que dorme tranquilamente. Numa cena bonita, emocionante, ela desperta do transe religioso com uma sensação ruim. Olha para a cama e percebe que Paulinho acabara de morrer.

"Jorge Andrade revela ambição literária superior a maioria dos dramaturgos brasileiros contemporâneos."

Anatol Rosenfeld

Socorro interrompe a reunião de condomínio e nada fala. Seu olhar e sua expressão dão o recado a Marta, que entende como encerrada sua missão. As mulheres da reunião de condomínio se colocam a orar em volta do cadáver de Paulinho. Marta se recolhe. Quando sai do quarto está vestida com o hábito de freira, hábito que não vestia desde antes de casar-se. Sua missão fora cumprida. Constituíra família e a perdera.
Com a morte do filho, ela se considera pronta para voltar ao convento e ser uma “verdadeira religiosa”. Diz: “Aqui é o meu lugar, depois que o meu filho morrer. Mas antes disso, eu quero deixá-lo um pouco dentro de cada um, como uma semente quando se joga na terra. Um dia ela germina, brota, cresce, dá flores e frutos”. Era o momento de voltar ao convento. Era o momento de servir a Deus da maneira que anteriormente ela julgara errada. Paulinho é cremado no Crematório da Vila Alpina e Marta espalha as cinzas pelo gramado que há ali.
Vivíamos sob severa ditadura. A classe artística estava na linha de frente, na vanguarda do pensamento de um futuro democrático para o país. Mas havia censura. Mais que censura, tortura, assassinatos, perseguições, exílio. Não havia outra discussão no Brasil daqueles tempos. Ou se era engajado ou se era alienado. Escrever novela engajada em 1975 era delírio, um delírio perigoso.
Jorge Andrade foi por outro caminho. Não quis ser adesista, pelego, vendido ao sistema. Tampouco quis encampar uma quixotesca campanha contra o regime num veículo de comunicação de massa. Jorge Andrade fez um libelo humanista com esta novela. Buscou questões muito mais profundas da sociedade, questões que transcendem a própria política e que naqueles dias estavam em segundo plano. Questões universais e muito mais próximas da vida de cada um dos telespectadores.



“Eu me considero um homem profundamente político por comentar a realidade que me está próxima, ou seja, a que fala de perto a nossos interesses. A partir dessa premissa, tornam-se secundárias quaisquer radicalizações e ganha ênfase a abertura da pessoa para acatar as discussões que se apresentarem relevantes."

A obra gerou grande repercussão na sociedade. Jogou na cara dos brasileiros problemas que não eram discutidos. Jorge foi acusado de denegrir a imagem da cidade de São Paulo. Mais que denegrir, deturpar. Recebeu reprimendas de deputados, participou de debates acalorados. No Rio de Janeiro, um edifício foi centro de uma polêmica. Uma criança com problemas mentais foi ameaçada de expulsão logo após a estréia da novela. Claro que Jorge Andrade foi considerado por muitos culpado, inspirador deste comportamento por conta dos condôminos. Era definitivamente uma novela polêmica.

“Por exemplo: uma pessoa que eu não conhecia, mas me reconheceu na praça Marechal Deodoro, depois do debate na TV sobre O Grito – de longe ela levantou o dedo e veio na minha direção: ‘O senhor não é Jorge Andrade?’; eu respondi que sim e ela prosseguiu: ‘Aprendi uma coisa que nunca me passou pela cabeça, quando o senhor disse que o seu direito termina quando começa o direito do outro. Eu nunca pensei que o meu direito fosse até onde começa o do outro, mas o do outro fosse até onde começa o meu. Eu me senti mais defendida.’"
Jorge Andrade

“Jorge Andrade, o respeitado dramaturgo, não é feliz na telenovela porque, infelizmente, não fala a linguagem da televisão, não aprendeu aquilo que, no jargão poderíamos chamar de televisês. (...) O Grito, como Os Ossos do Barão, é simplesmente uma telenovela chata e chatice não dá status cultural a texto nenhum. Por não ter ritmo, por submeter atores como Walmor Chagas e Isabel Ribeiro a soluções artificiais e textos escabrosamente pretensiosos, essa novela não consegue se aproximar, sequer de longe, da importância do teatro de um Jorge Andrade e chega até mesmo a comprometer o autor, na sua dimensão de artista e autor num contexto de cultura brasileira.”
Paulo Maia

O Grito gerou um dos mais estranhos fenômenos de audiência dos últimos tempos. Normalmente a novela das dez tem uma média de audiência mais ou menos fixa. Esta tinha dias de piques mais altos que as demais do horário e dias de acentuadas quedas durante o período em que estava no ar, quedas estas igualmente recordistas (como os piques). Esse comportamento irregular da audiência mostra a estranheza do público frente a um estilo de telenovela que discrepou do habitual, pois em vez de simplesmente distrair o público com muita ação e acontecimentos, preferiu fazê-lo pensar, entrar em si mesmo, meditar.”
Artur da Távola

“O meu personagem era um diretor do Banco do Brasil. Passou a ser funcionário, porque diretor do BB não pode ser dúbio (naquela época, pelo menos, não podia), e ele era castrado, tanto pela mãe que o protegia muito, quanto pelo pai que achava que ele não era homem. Durante a semana, era um homem normal, mas, toda sexta-feira, saía pela Av. Ipiranga com a São João, vestido de uma maneira muito estranha, para ‘ver’ as pessoas. Era mais um voyeur do que qualquer outra coisa. Quando voltava para casa, se trancava no quarto e o quarto era uma jaula de leão e ele ficava andando de um lado para o outro com um leão enjaulado, tamanho era o desespero de não conseguir dar um sentido à sua vida. Acabava sempre no telefone, falando com o CVV; só aí ele se acalmava.”

Rubens de Falco


A força de Marta contrastava com a fragilidade de personagens como Kátia (Yoná Magalhães). Uma ex-prostituta, hoje trabalhando como secretária num escritório no centro da cidade. Ela sobrevivera ao incêndio do Edifício Joelma, quase dois anos antes. A lembrança do fogo consumindo tudo, a fumaça, o desespero das pessoas nas escadas e elevadores, nada disso saía da mente de Kátia. Justo ela, uma mulher belíssima e alegre, convivia desde então com o que hoje conhecemos como síndrome do pânico (ou talvez stress pós traumático).
Consta que o maior pico de audiência de O GRITO se deu na famosa sequencia em que ela se debruça na janela de seu apartamento e faz um sensualíssimo striptease, causando um enorme engarrafamento no Minhocão. O investigador da Polícia Civil interpretado por Ney Latorraca é outro personagem de aparência normal que esconde dentro de si dores inomináveis.


"Eu e a Elizabeth Savalla, como a Malvina de Gabriela, havíamos estourado. O Avancini nos chamou para protagonizar O Grito, uma novela densa do Jorge Andrade, que em minha opinião é um autor injustiçado. O elenco era simplesmente maravilhoso. A história toda se passava em uma semana e todos os personagens, exceto eu, viviam no mesmo prédio. Eu ficava no edifício em frente observando tudo de binóculos. Não foi um sucesso, a novela ficou meio maldita e até hoje, junto com O Rebu e Beto Rockfeller, é estudada pelos pesquisadores, é a queridinha das teses. Para mim deu prestígio e a oportunidade de aprofundar meus laços com Walter Avancini, com quem fiz os mais belos trabalhos na TV.” 
Ney Latorraca

Sérgio observava o Edifício Paraíso de um apartamento do outro lado da rua. Estava de campana, investigando os moradores do prédio. Havia um esquema de contrabando funcionando e a polícia já sabia que a fonte estava naquele edifício. Mas qual morador seria o responsável? Descobrir isso era a função de Sérgio, auxiliado pelo inspetor Rangel (Antônio Ganzarolli) e por sua inseparável máquina fotográfica Nikon e binóculos. Observar a adolescente Estela (Lídia Brondi), moradora do apartamento de cobertura, faz com que ele se recorde de sua filha. Uma adolescente quase da mesma idade que cometera suicídio anos antes.
Estela vive em conflito com a mãe, Mafalda (Maria Fernanda), que não concorda com o namoro de sua filha com o garoto Guilherme (Guto Franco) por ele não ser de família tradicional. Mafalda é uma mulher preconceituosa, que se recusa a receber em casa a sogra por ela ter sangue negro correndo nas veias. Mas seu conceito de moral é um tanto quanto falho, já que ela não se recusa a recepcionar mercadorias importadas contrabandeadas pela aeromoça Midori (Midori Tange).

 “Ah, O Grito... Jorge Andrade. Todas as novelas dele eram fantásticas. Podiam até não fazer sucesso de público, mas eram tão boas quanto suas peças.”
Leonardo Villar

Edgar (Leonardo Villar) é um homem do bairro do Ipiranga, de família humilde e pais mestiços, tipicamente brasileiros. Com trabalho duro fez fortuna o suficiente para, entre outros negócios, construir o Edifício Paraíso. Vive com Mafalda e Estela no maior apartamento do prédio, a cobertura recheada de hipocrisia e incompreensão.
O namoradinho de Estela é um dos três filhos de Gilberto (Walmor Chagas) e Lucia (Isabel Ribeiro). Ele é professor universitário, antropólogo e pesquisador. Ela, artista plástica. Criam seus filhos em harmonia e cercados por livros, boa música e cultura.
Gilberto usa sua própria vizinhança como espécie de laboratório de estudo. Usa seu poder de observação do comportamento humano para perceber o relacionamento das pessoas dentro daquele ambiente, um verdadeiro microcosmos da sociedade urbana brasileira. Essa consciência do ser humano confere a Gilberto a humanidade necessária para compreender Marta, seu filho, e o drama que representaria para esta mulher ser novamente expulsa de um condomínio. Torna-se seu aliado de primeira hora.
Uma das maiores críticas da imprensa especializada a O GRITO residia justamente sobre essa família, a do professor Gilberto. Diziam que eles viviam numa espécie de bolha, completamente alheios à realidade. Todas as conversas eram intelectualizadas, plásticas, sem verdade e afetividade. Não havia conflitos entre eles. Eram bons, amáveis, gentis, inteligentes e sem defeitos.

"Rogério é um dedo-duro, um fascista! Ter sido fascista na década de trinta... ainda se compreende! O fascismo se apresentava como uma renovação! Mas ser fascista depois dos campos de concentração, da matança de judeus, de toda sorte de injustiças... é coisa inconcebível, principalmente num jovem!"

Gilberto (Walmor Chagas) falando de Rogério (João Paulo Adour), namorado de seua filha.

 Perguntado se Gilberto seria uma espécie de alter-ego de si mesmo, Jorge Andrade não negou. Disse que o valor da personagem residia justamente no que apontavam ser um defeito. Ele era o único que, em meio a essa realidade hostil, respirava e tinha consciência para fazer uma análise.
A análise que, pretendia Jorge, fizesse o telespectador refletir melhor sobre as demais cenas e sobre sua própria vida: “Gilberto é mais didático. Ele é uma espécie de coro da novela. Ele tem que falar sobre a cidade, sobre os homens, eu não posso criar situações dramáticas para dizer isso porque aí ninguém entenderia mesmo. Ele tem que ser necessariamente didático. Por pouco que seja, cada apartamento do Paraíso é um mundo de conflitos: O Grito representa várias novelas enfeixadas numa só.”
Jorge tinha por hábito desenvolver sinopses para suas novelas com um volume considerável e descrições detalhadas de características dos personagens, chegando a três ou quatro laudas para cada um deles. Não se importava com o IBOPE ou com pesquisas encomendadas pela emissora a respeito de pares românticos, temáticas etc. Para ele, a novela de televisão merecia o mesmo cuidado que ele dedicava a seu teatro. Ingenuidade ou genialidade incompreendida?

“No mundo de hoje, o homem suporta os gritos da tecnologia, das obras, do trânsito, de tudo quanto é material, porém não quer suportar seus próprios gritos. Torna-se então preconceituoso e intolerante e foi desse clima que elaborei a minha novela. No Edifício Paraíso, coloquei um extrato da grande cidade e fiz com que ela se refletisse no comportamento de seus moradores''

“A parte do autor, o erro foi de dosagem. Jorge Andrade multas vezes criou situações de grande tensão e intensidade, mas cuja solução só ia se dar quase duas semanas depois, pois antes a ação da novela tinha que parar um pouquinho em cada personagem. Outro equívoco de dosagem do autor foi o excesso de repetição de diálogos e de situações já vividas por parte dos personagens. Nessas repetições de coisas já ditas e situações já delineadas, o autor conseguia tornar a novela desnecessariamente monótona em várias passagens. Faltou concisão. Com tudo isso, porém, O Grito conseguiu ser um marco em nossa televisão por tudo o que propôs e disse.”

Artur da Távola


"’O Grito’ é de 1975 e aproveita temas e idéias da obra teatral de Jorge Andrade. A novela não foi bem recebida pela crítica da época. Isso foi uma frustração a mais para ele, que encarava seu trabalho na TV com a mesma seriedade com que levava a vida, em geral. Segundo a pesquisadora Maria da Glória Bordini, Erico Veríssimo morreu em 28 de novembro de 1975 depois de assistir à novela. Ele conversara com Jorge Andrade ao telefone, durante o jantar, incentivando o escritor a seguir adiante, apesar das críticas que vinha sofrendo. Assistiu à novela às 22h e teve um enfarte. Sei que não existe uma relação necessária entre os fatos, mas de todo modo é comovente.”
Sabina Anzuategui


"Se todos podem ouvir os gritos da cidade, os barulhos que ela faz, porque não ouvir os gritos dos outros?"

Trecho de uma fala de Marta (Glória Menezes) no último capítulo da novela.


3 comentários:

  1. Existe adjetivo melhor que excelente? josé victor, meus parabéns por esse verdadeiro estudo sobre a obra...tb sou fã dessa novela e me lembrei agora da fase do sequestro da personagem de Lidia ... na verdade, essa parte acho que deu a maior audiência. Muito bom ler críticas da época e ainda por cima ver de quem são essas opiniões. Acho que uma novela que é completamente passível de um remake, não simples remake, mas de uma atualização. Adorei o seu post que pra mim já é um clássico aqui no blogue.

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  2. Adorei o texto... "O Grito" é uma das novelas que mais tenho curiosidade... E uma das mais "misteriosas"...

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  3. o José Vitor capricha em seus textos... O Grito é uma novela pouco lembrada e pela forma como a postagem foi feita percebe-se o verdadeiro encantamento do Vitor pela novela... fiquei curioso por vê-la!

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